Gurpreet Singh não será esquecido

Teremos uma geração com dimensão relativamente expressiva de portugueses de origem sul-asiática que nos recordarão do que fizemos (e não fizemos) quanto ao racismo e xenofobia de que são alvo.

Daqui a umas décadas, teremos uma geração com uma dimensão relativamente expressiva de portugueses de origem sul-asiática que nos recordarão do que fizemos (e não fizemos) quanto ao racismo e xenofobia de que são alvo e que questionarão, a partir da sua experiência, a identidade nacional.

Não serão os descendentes dos goeses que vieram para Portugal após a anexação de Goa à República da Índia no início da década 1960 ou após a independência de Moçambique, em meados dos anos 1970. Em ambos os casos, tratava-se de uma elite intermediária, com ligações históricas profundas ao aparato colonial português na Ásia e em África. Se, comparativamente aos africanos, os asiáticos – isto é, goeses, timorenses e macaenses – eram colocados pelo Estado Novo num lugar superior numa pretensa escala civilizacional, a verdade é que o estatuto de racializado “especial” não os livrou de serem considerados inferiores e colonizados pelos portugueses.

O caso de António Costa, ex-primeiro ministro, é a este propósito elucidativo. Embora pertencente à casta brâmane, à elite política portuguesa e de se destacar por um discurso conciliatório de laivos lusotropicalistas que evita tocar na questão racial – ao ponto de estabelecer comparações inaceitáveis entre o movimento antirracista e a extrema-direita –, não escapou de insultos racistas.

Essa geração que virá será descendente de pessoas como Gurpreet Singh, de nacionalidade indiana, brutalmente assassinado, ao que tudo indica, por motivação racista, em Setúbal, no início deste mês, e lembrar-nos-ão a pouca cobertura mediática do caso e a ausência de comoção e repúdio coletivos na sociedade portuguesa.

Serão filhas e filhos de pessoas provenientes do Bangladesh, como aquelas torturadas e humilhadas em Vila Nova de Mil Fontes por “satisfação e desprezo” de sete militares da GNR. Pedir-nos-ão contas do vergonhoso processo judicial a esse propósito desencadeado e que chegaria ao fim em junho de 2023. Entre o Tribunal de Beja e o Tribunal da Relação de Évora, o sistema de justiça lá foi arrastando o caso durante quase cinco anos; esquecendo a motivação racial e xenófoba; deliberando reduções de pena, absolvições de crimes; distribuindo penas suspensas e revogando penas acessórias de proibição do exercício de funções na GNR.

Elas e eles confrontar-nos-ão com a hipocrisia de uma sociedade que se diz campeã da integração de imigrantes, mas que explorou os seus pais – provenientes da Índia, Bangladesh, Nepal e Paquistão – num regime de quase-escravatura nas estufas do Alentejo e do Algarve, naquele que é um crime do ponto de vista humano e ambiental. Lembrar-nos-ão quiçá da exploração desumana dos seus familiares enquanto motoristas da Uber e nas entregas domiciliárias de refeições à chuva, ao frio, debaixo do sol e em contexto de pandemia. Criticarão a posição pública da Associação Nacional Movimento TVDE que, embora alerte para situações de “tráfico humano” e dificuldades no reagrupamento familiar entre os motoristas imigrantes, parece mais interessada em limitar o acesso destes à profissão – por alegadamente não falarem português e terem licenças pouco criteriosas – do que em criar condições para partilhar com eles postos de trabalho.

Essa geração procurará escrever a história da participação política dos seus ascendentes na sociedade portuguesa. Terá, com certeza, debates internos calorosos sobre qual a estratégia a seguir. Pergunto-me se procurarão estabelecer alianças com o movimento antirracista negro, cigano e com associações imigrantes de outras origens. Irão eles preferir reivindicar ativamente os seus direitos e resistir compactuar com o mito do “bom imigrante”? Ou preferirão uma estratégia mais discreta, delegando a estratégia política nas lideranças, não levantando ondas que possam colocar em risco os pequenos negócios na área da restauração e comércio, apostando no lobby de bastidores? Seja como for, duvido que eles se esqueçam de Gurpreet Singh e nós precisamos que eles nos lembrem.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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