Recordando Curzio Malaparte, num tempo de outras barbáries

Para os fervorosos adeptos da eliminação de escritores, sob acusação inventada ou deturpada, deixo a informação de queTécnica do Golpe de Estado foi a primeira obra contra Hitler aparecida na Europa.

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Pronunciar o nome do escritor e jornalista Malaparte (1898-1957), entre algumas pessoas, é constatar o seu desconhecimento ou então ouvir, numa suspeita acusatória: “Mas ele não foi fascista?”, anulando-se assim rapidamente autor e obra. Fica no ar essa manifesta incapacidade que muitos têm em interrogar-se, em reflectir sobre as suas próprias contradições, das quais, muitas vezes, nem sequer se dão conta. São uma espécie de “Príncipes”, animados pelas suas certezas e seguros das suas suposições, mesmo falando do que não conhecem, e no caso de um escritor, do que não leram. E assim se estabelecem pseudoverdades que se perpetuam, no diz-se, diz-se…

Para os fervorosos adeptos da eliminação de escritores, sob acusação inventada ou deturpada (vivenciei idêntica situação com Fernando Pessoa, na Faculdade), deixo a informação de que o livro de Malaparte Técnica do Golpe de Estado (1933) foi a primeira obra contra Hitler aparecida na Europa e proibida em Itália e na Alemanha, valendo-lhe o início de uma perseguição sem tréguas – exílios e prisão que “definitivamente o esclareceram sobre ídolos passados” –, bem como a sua expulsão do Partido Nacional Fascista do qual foi efectivamente membro, durante alguns anos.

Clássico da Literatura, foi-me dádiva de um amigo muito querido, colega de Filosofia, na Escola Sec. Marquês de Pombal, nesse gesto de partilha de leituras que por gostarmos aconselhamos aos outros, e que tem sido, por vezes, tão mal-aceite, mormente no Ensino. Essa dádiva foi acrescida com uma das suas obras, Kaputt, (Edição Livros do Brasil, 1962, tradução e prefácio de Amândio César), que Malaparte definiu como um “livro horrivelmente cruel e divertido”, acrescentando que “a alegria cruel é a mais extraordinária experiência que tirei do espectáculo da Europa no decorrer destes anos de guerra.” Assim é o Nazismo, passado ou presente: o Outro, escolhido como bode expiatório, transformado em espectáculo ao qual assiste, sorrindo, o verdugo, no singular ou no plural, comprazendo-se, em grau superlativo, perante o sofrimento atroz da vítima.

Kaputt, publicado em 1943, em Nápoles, pouco depois do desembarque dos Aliados, sendo Malaparte correspondente de guerra de 1941 a 1943, entre a aldeia de Pestchianka (na Ucrânia), a Finlândia e Capri, foi escrito nesta última, já após a queda de Mussolini. Este livro foi, na verdade, o mais horrível que li no que ao sofrimento diz respeito e à degradação de quem vilmente o pratica, forçando-me inclusive a interrupções várias na sua leitura, tal a náusea, física e psíquica, que a violência das descrições e acções provocam. Nele visualizei o nazismo como o Mal, e esse olhar tornou-se tanto mais sombrio quanto coube a uma criança revelar-mo, mediante a sua leitura, perspicaz e inteligente, de um rosto nazi. Transcrevo, na íntegra, o momento em que o pequeno “guerrilheiro”, com “menos de 10 anos”, “último resistente” de Poltava, aldeia ucraniana acabada de ser queimada por bombas incendiárias, “magro, causa aflição, tem a roupa em tiras, o rosto sujo, cabelos ruços, as mãos queimadas”, é arrastado pelos soldados nazis até junto do oficial que comandava as operações: Ouve, eu tenho um olho de vidro. É difícil distingui-lo do bom. Se fores capaz de me dizer imediatamente, sem pensar, qual dos dois é o olho de vidro, deixo-te partir em liberdade.

– O olho esquerdo – respondeu imediatamente o rapaz.

– Como o descobriste?

– Porque é o único que tem expressão humana.

Confesso que foi pelo recente conflito entre Israel e Palestina, com barbárie de ambos os lados, mas, indesmentivelmente, pós 7 de Outubro, centrada na Faixa de Gaza, e aí continuando em extremo, que me lembrei de Kapput de Malaparte. Por associação, pensei nos olhos de Benjamin Netanyahu e na inexistência de “expressão humana”, reflectida nos seus discursos de ódio, na selvajaria das suas imposições aos palestinianos, sob o olhar complacente, hipócrita e fingidamente preocupado da UE, dos EUA e de países árabes, bem como na invocação de um Deus à sua imagem, um Deus pessoal, tão injusto, tão vingativo e tão carniceiro quanto ele. Netanyahu, o político que contra a Autoridade Palestiniana alimentou e usou o Hamas, invocando-o precisamente como “amigo e inimigo”, surge agora, no seu intenso entusiasmo pela guerra, a lutar contra o terror que ele ajudou a criar!... A história não é única e, a comprová-lo, vemos o que aconteceu no Afeganistão com os EUA e os Taliban.

E porque a Literatura é, na verdade, uma amostragem da “vida autêntica”, que muitos crêem fictícia, lembrei-me também de Primo Levi (1919-1987) e do seu livro Se Isto é um Homem, escrito em 1947 e só publicado, depois de várias recusas, em 1958. Tenebrosa experiência de Auschwitz, a seu tempo também desmentida, talvez para consolar más consciências, tal como tem acontecido com as repugnantes intervenções do chanceler alemão, Olaf Scholz, ou as dos militares israelitas que dão quatro horas aos palestinianos para saírem da Faixa de Gaza, apontando-lhes o Sul, e depois bombardeiam o Sul, ordenando-lhes que fujam para lado nenhum, num país, aliás, inexistente porque completamente arrasado.

Há na obra citada, uma situação que de algum modo implica esse Deus pessoal de que Netanyahu se serve, bem como os comparsas ultra-ortodoxos e de extrema-direita. Releio a descrição de Primo Levi, a propósito de uma “selecção” em Auschwitz, caracterizada pelo seu habitual “exame rápido e sumário”, apontando-se aos “seleccionados” “o lado esquerdo”, com o consequente “direito a ração dupla”, nesse dia. Sigo depois, já no dormitório com os restantes companheiros, o seu olhar que pormenorizadamente revela o ambiente soturno e o momento em que inesperadas palavras intrusas o irritam veementemente, forçando-o a interrogar-se e forçando implicitamente os leitores a fazê-lo, o que aliás lhe é habitual.

Não posso deixar de transcrever, na íntegra, a experiência relatada, com a qual concluirei o meu texto. Estou certa de que compreenderão que, na verdade, nada mais há a acrescentar: “Agora cada um está a rapar cuidadosamente com a colher o fundo da marmita para tirar os últimos restos de sopa, o que provoca um ruído metálico que significa que o dia acabou. Pouco a pouco o silêncio prevalece, e então, da minha cama, no terceiro andar, vê-se e ouve-se que o velho Kuhn reza, em voz alta, com o boné na cabeça e abanando o corpo com violência. Kuhn agradece a Deus por não ter sido escolhido. Kuhn é um insensato. Não vê, na cama ao lado, Beppo, o grego, que tem vinte anos, e que depois de amanhã irá para o gás; e que, sabendo-o, fica deitado olhando fixamente a lâmpada sem dizer nada e sem pensar em mais nada? Não sabe Kuhn que a próxima será a sua vez? Não percebe Kuhn que hoje aconteceu uma coisa abominável que nenhuma oração propiciatória, nenhum perdão, nenhuma expiação dos culpados, nada, em suma, que esteja em poder do homem fazer, poderá nunca mais cancelar? Se eu fosse Deus, cuspiria para o chão a oração de Kuhn.”

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