Há 700 mil portugueses com insuficiência cardíaca, mas a esmagadora maioria nem sabe

Entre a população portuguesa com mais de 50 anos, uma em cada seis pessoas tem insuficiência cardíaca. É a primeira vez, em mais de 20 anos, que há um estudo nacional sobre esta doença.

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Em Portugal, mais de 700 mil portugueses acima dos 50 anos terão insuficiência cardíaca. Ou seja, uma em cada seis pessoas tem esta doença crónica grave em que o coração não consegue cumprir com as suas obrigações. Mais: entre estes 700 mil portugueses, 90% não sabem que têm a doença. Estes resultados, que retratam o panorama nacional pela primeira vez em mais de 20 anos, são apresentados nesta terça-feira, a partir das 9h30, na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa.

As expectativas de Cristina Gavina, responsável pelo estudo que origina estes dados, não eram animadoras – mas eram melhores do que o quadro final. “Confesso que fui surpreendida”, diz ao PÚBLICO. A estimativa quase duplica os resultados publicados em 2002 por um estudo que estimou existirem cerca de 400 mil pessoas com mais de 25 anos a viver com insuficiência cardíaca em Portugal. Este novo trabalho liderado por Cristina Gavina, e que ainda não foi publicado numa revista científica, centrou-se em quem tem maiores probabilidades de desenvolver a doença, ou seja, população com mais de 50 anos.

“É uma epidemia silenciosa”, classifica a directora do serviço de Cardiologia da Unidade Local de Saúde de Matosinhos. Problemas clássicos como hipertensão, diabetes, obesidade ou tabagismo agravam o risco de desenvolver a doença que é, também, o principal motivo de internamento hospitalar em Portugal. “A insuficiência cardíaca resulta de muitas outras doenças, como a hipertensão ou o enfarte agudo do miocárdio, por exemplo. Isso faz com que não seja fácil de diagnosticar. É preciso estar muito atento e procurar os sintomas para se suspeitar de insuficiência cardíaca”, diz.

O envelhecimento da população também torna mais natural o aumento da prevalência de casos de insuficiência cardíaca, até devido à existência de ataques cardíacos anteriores (que trazem sequelas para o coração), explica Hugo de Mendonça Café, cardiologista e professor na Universidade do Algarve. “As pessoas também desvalorizam os seus sintomas. O cansaço, a falta de ar ou a incapacidade de fazer algumas actividades são considerados ‘normais para a idade’”, lamenta. O crescimento da prevalência da insuficiência cardíaca também se tem verificado noutros países europeus, apesar de os dados terem um peso maior em Portugal – no entanto, não é possível comparar directamente, uma vez que os dados nacionais se referem apenas a população acima dos 50 anos.

A insuficiência cardíaca acontece quando o coração não bombeia adequadamente o sangue para o resto do corpo – o que dificulta todas as restantes funções do nosso corpo. Mas também há casos, menos comuns, em que o bombeamento funciona, mas a fase de relaxamento não. “Imagine uma bomba de água em que tem de puxar a manivela e apertar depois para sair a água. Quando aperta, a água sai bem. Mas quando puxa para entrar mais água, não enche bem”, explica Hugo de Mendonça Café.

A existência de lesões no músculo do coração ou nas válvulas pode levar a complicações devido à falta de oxigénio ou de nutrientes. Sem diagnóstico precoce, nem tratamento atempado, as complicações podem ser mais graves – daí que muitos doentes só descubram que têm insuficiência cardíaca no hospital. Apesar do sucesso dos tratamentos, quase metade das pessoas com esta doença morre nos cinco anos após o diagnóstico, de acordo com alguns estudos europeus e norte-americanos sobre o peso desta doença para a população.

“Os cidadãos têm de ter maior consciencialização de que esta doença existe e é mortal, mas que podemos prevenir e que há tratamentos para evitar a progressão da doença. As pessoas já ouviram falar de insuficiência cardíaca, mas não sabem bem o que é”, admite Cristina Gavina, cuja equipa inquiriu e examinou mais de 6000 portugueses para este estudo.

Exames rápidos, precisam-se

“A maioria das intervenções de que vamos precisar será nos cuidados de saúde primários. Queremos diagnosticar precocemente para evitar que cheguem aos cuidados hospitalares”, defende a responsável da Unidade Local de Saúde de Matosinhos. Uma das reivindicações é a incorporação nos centros de saúde de uma técnica utilizada neste recente estudo que Cristina Gavina liderou: a medição dos peptídeos natriuréticos do tipo B, uma proteína cujos níveis elevados podem ajudar a indicar um possível diagnóstico de insuficiência cardíaca. “Era uma forma muito simples de conseguirmos resolver a questão do diagnóstico nos cuidados de saúde primários”, aponta.

A utilização destes biomarcadores como primeiro exame permitiria resultados ao fim de dez minutos – mas não um diagnóstico. Para se confirmar a doença, é necessário depois a realização de um electrocardiograma. “Funciona como um exame de exclusão. Se o resultado for negativo, a probabilidade de ter insuficiência cardíaca é muito baixa”, acrescenta Hugo de Mendonça Café. “Se tivéssemos a possibilidade de, com um teste rápido, conseguir dar resposta num centro de saúde, seria excelente. Poderíamos dizer logo, em caso de negativo, que não estaria relacionado com a parte cardíaca – e assim avançar para outras opções.”

Este exame não é comparticipado no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e tem um custo superior a cem euros em laboratórios privados, o que dificulta aquilo que estes dois especialistas consideram ser uma ferramenta importante para um diagnóstico mais precoce da doença. Um estudo de impacto, publicado em 2022 por Cândida Fonseca, apontava para que a aplicação dos testes com peptídeos natriuréticos do tipo B nos centros de saúde como primeira fase de diagnóstico poderia poupar entre 935 mil euros e quase três milhões de euros ao SNS, devido à redução de consultas médicas, ecocardiogramas e hospitalizações.

“Neste momento, essa não tem sido uma prioridade dentro do SNS. Não tínhamos também dados recentes para mostrar a real dimensão do problema”, diz Cristina Gavina, sublinhando que uma em cada seis pessoas com mais de 50 anos tem insuficiência cardíaca – e a maioria não o sabe. “Há muitas pessoas sem diagnóstico e esse é o problema. Os cuidados de saúde deviam contemplar este tipo de análise. Se detectarmos precocemente, vamos conseguir evitar os custos acrescidos no fim de vida.”

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