Postal de São Domingos de Rana: “O tempo que me dedicas”

O ato de dedicar tempo àqueles que amamos e, porque não?, aos que não amamos, transforma objetos e pessoas em valiosíssimos tesouros.

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João da Silva
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Quase todas as semanas visito a Biblioteca Municipal de São Domingos de Rana. Da entrada, vê-se a porta da sala multiusos, onde se realizam conferências, encontros literários, espetáculos e exposições. Quando a porta está aberta, espreito. Foi o que fiz ontem.

A exposição atual (até ao próximo dia 9) homenageia o 80.º aniversário de O Principezinho, a inesquecível obra de Antoine de Saint-Exupéry. E fá-lo de forma extremamente original.

As 25 obras pintadas a caneta, aguarela e pastel de óleo por Sérgio C. C. (Sérgio Carvalho Coutinho, 1987) são uma viagem à alma do Principezinho envelhecido sob a forma de perguntas subtilmente pintadas sobre o destino do Aviador, da Rosa, da Raposa e até mesmo da Ovelha que comeu a flor, convidando-nos a refletir sobre o que aconteceu após a última página do livro. Como envelheceu o Principezinho? Como lidou como as complexidades da vida adulta? Manteve os valores da infância?

Esta indagação artística e filosófica que Sérgio C.C. faz do universo único da obra de Saint-Exupéry fez-me pensar no meu “eu Principezinho” e nas lições preciosas (e menos preciosas…) do meu passado e em todas as páginas que virei, os capítulos que encerrei e comecei e em todos os livros que deixei definitivamente na estante. (Alguns, entretanto, reabri-os, transformando o “definitivamente” em temporariamente)

Pensei também na sinfonia de tosses, fungares e espirros destas manhãs de outono e na felicidade de, sendo crescido, poder cuidar de quem ainda não consegue cuidar de si sozinha. (Cuidar de nós sozinhos; será que esse dia acaba por chegar?).

“O tempo que me dedicas.”

A pintura de Sérgio C.C., inspirada na obra de Edgar Degas, especificamente La Coiffure (1895), remete-nos para o tempo investido em cuidar e, tendo em conta o contexto, para a famosa: “Foi o tempo que dedicaste à tua rosa que a fez tão importante...”

O ato de cuidar. O valor de algo intrinsecamente ligado ao tempo e à dedicação que investimos nele. O ato de dedicar tempo àqueles que amamos e, porque não?, aos que não amamos, transforma objetos e pessoas em valiosíssimos tesouros.

“Que tempo me dedicas?”, poderia perguntar a senhora que ouvi na rádio, há dias, numa reportagem sobre idosos que vivem sozinhos, a lamentar-se de que a filha deixou de a visitar há dois anos. Não sei porquê, a senhora não esclareceu. Mas isso não me interessa. Interessa-me a solidão que relatou e o de não ter quem cuide dela na Noite de Natal.

Numa casa fria, isolada. Mas podia ser num aglomerado de casas, isolada. Ou num hospital. Nos hospitais há dúzias de idosos abandonados pelas famílias. Conheci alguns. Vi-lhes a tristeza do abandono na forma como, ao lanche, levavam à boca a carcaça com manteiga. Não me perguntem como é que eu via isso. Não o sei explicar. Sentia. Aquecidos e alimentados, mas abandonados.

“O tempo que me dedicas.”

Uma coisa que me fascina em nós, seres humanos, é como nos assemelhamos tanto na alegria de receber atenção e dedicação e na tristeza face à indiferença e ao abandono.

“Para lá caminhas”, alertava-me a minha avó quando, para a judiar, lhe chamava velha.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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