Banido no Ocidente, Vladimir Gergiev brilha na Rússia e ascende a director do Bolshoi

A recusa em condenar a invasão da Ucrânia ditou o fim da sua carreira no Ocidente. Na Rússia, brilha como nunca. Foi nomeado director do Bolshoi, cargo que acumulará com direcção do Teatro Mariinsky.

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Valery Gergiev ainda enquanto maestro-estrela, a dirigir em 2020 a Orquestra Filarmónica de Viena LISI NIESNER/Reuters
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O seu brilho pode ter-se desvanecido totalmente no Ocidente, onde as posições pró-Kremlin e o apoio à invasão russa da Ucrânia tornaram persona non grata aquele que era um dos mais respeitados maestros mundiais, mas na Rússia Valery Gergiev resplandece. Director desde 1996 do Teatro Mariinsky, de São Petersburgo, foi agora o escolhido pelo Kremlin para dirigir também o Teatro Bolshoi, em Moscovo, acumulando a liderança das duas maiores instituições do bailado e da ópera russas. Sinaliza-se assim um regresso às práticas da Rússia imperial — a direcção conjunta dos dois teatros foi a norma até à Revolução de 1917.

A notícia foi confirmada na sexta-feira numa declaração, no Bolshoi, da vice primeira-ministra Tatyana Golikova. Valery Gergiev dirigirá o teatro moscovita nos próximos cinco anos, substituindo Vladimir Urin, há dez anos no cargo e que oficialmente abandona o cargo por razões pessoais – Urin foi um dos signatários, no início da guerra na Ucrânia, de uma carta aberta pedindo o fim do conflito, endereçada por agentes do meio artístico aos dirigentes russos.

Alinhado com a visão imperial de Putin para a Rússia, assente na trindade “nacionalismo, ortodoxia e conservadorismo”, como refere ao Guardian Simon Morrison, investigador de música russa na Universidade de Princeton, Gergiev será agora o equivalente, no país dirigido por Putin, dos antigos directores do teatro imperial do século XIX. “Aquilo que podemos antecipar são espectáculos nas óperas do Bolshoi que afirmem o lugar da Ucrânia, da Polónia e da Geórgia no império russo”, prevê o académico.

Valery Gergiev, outrora um dos mais requisitados maestros contemporâneos, enquanto embaixador da rica tradição musical russa, foi sucessivamente afastado das posições que ocupava em instituições europeias pelo apoio a Putin e pela recusa em condenar a invasão russa da Ucrânia, em Fevereiro do ano passado. Deixou de ser maestro principal da Orquestra Filarmónica de Munique, cargo que ocupava desde 2015, foi demitido da presidência honorária do Festival de Edimburgo ,e salas como o Scala, em Milão, ou o Carnegie Hall, em Nova Iorque, cancelaram as apresentações que tinha marcadas para Março de 2022 e cortaram relações com o maestro – o mesmo já acontecera, de resto, com o festival Dvorák em Praga, na República Checa, ou com o festival de música clássica de Verbier, na Suiça, que anunciaram unilateralmente o cancelamento das apresentações de Gergiev para as edições daquele ano.

O apoio pessoal a Putin e o alinhamento com a política do Kremlin na questão ucraniana não constituíram, porém, qualquer surpresa. Gergiev deslocou-se pessoalmente a Tskhinvali, na Ossétia do Sul, para ali dirigir um concerto, na sequência da guerra que em 2008 opôs naquele território a Rússia e a Geórgia. Em 2014, o seu nome apareceu entre o das figuras “notáveis” que apoiavam em carta aberta a invasão da Crimeia pela Rússia, algo que Gergiev negaria mais tarde – ainda assim, as suas posições pró-Putin levaram a que o Ministério da Cultura ucraniano banisse o maestro de actuações no país.

Dois anos mais tarde, em 2016, levou a Orquestra Sinfónica do Mariinsky a actuar nas ruínas de Palmira, na Síria, forma de assinalar a intervenção russa, aliada ao regime sírio, que esmagou a revolta popular contra Assad e a implantação do Daesh no país.

Distinguido este ano por Putin com a Ordem de Mérito da Pátria, Gergiev actuou pela primeira vez fora da Rússia, desde o início da guerra, no passado mês de Março, quando levou o Mariinsky numa digressão pela China, dirigindo apresentações de O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, O Anel do Nibelungo, de Wagner, ou Pássaro de Fogo, de Stravinsky. "É como voltar a casa", exultou em declarações à imprensa chinesa.

Apesar de a nomeação de Vladimir Gergiev para o Bolshoi estar a ser vista à luz do conflito em curso na Ucrânia e do afastamento pelo Kremlin de quaisquer vozes discordantes que Putin tem levado a cabo desde então, substituindo-as por figuras leais ao regime, a BBC dá conta de que, semanas antes do início da invasão, o presidente russo indagara junto do maestro a sua opinião sobre a direcção conjunta do Bolshoi e do Mariinsky, regressando à prática anterior à revolução de 1917. “Talvez seja tempo de pensar em como coordenar esforços”, terá concluído Gergiev no final de uma longa resposta.

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