Casa da Guitarra: “Estes instrumentos dão-me muitas lições”

No Porto, todos os caminhos vão dar à Ponte Luiz I e à Avenida Vímara Peres. Lá encontramos a Melhor Pedra Preciosa Escondida de Portugal.

CASA DA GUITARRA NO PORTO
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"Não acredito na simetria, gosto mais da assimetria", confessa Alfredo Teixeira ADRIANO MIRANDA
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Detalhe da colecção da Casa da Guitarra ADRIANO MIRANDA
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Alfredo a tocar ao lado do filho João ADRIANO MIRANDA
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Nasce em 2012 a Casa da Guitarra ADRIANO MIRANDA
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No chão, junto à entrada da oficina, está um cesto de nozes miúdas colhidas da base da nogueira, altiva no pátio húmido e romântico. Não foge à regra do espaço "abandalhado" — "Não acredito na simetria, gosto mais da assimetria", confessar-nos-ia mais tarde o violeiro ("No Porto cidade, acho que sou o único construtor") — e cheio de esqueletos de instrumentos musicais, de cordofones, de violas e de violões que "essencialmente são guitarras" esventradas até ao tutano, reparadas, construídas e reconstruídas, pedaços de madeira mais ou menos nobre torcidos, grampos bem firmes, braços e moldes, ilhargas, costas e travessas, tampos e escalas, uma "bandalheira" que tão bem soa.

Existe uma parte da história da Casa da Guitarra que já só está pendurada nas paredes da Casa ou nas entrelinhas da Casa, que está esparramada, dispersa, ao acaso, em várias direcções, nas bancadas de trabalho da oficina do violeiro, lá para os lados de Monte dos Burgos, e na cabeça de Alfredo Teixeira (1965), tocador de cordofones desde os 13 anos, construtor "mais ou menos autodidacta" desde 2007, "memória péssima para datas", mãos de ouro moldadas livro após livro, manual após manual, guitarras desmembradas — e outra e mais outra — que tanto lhe ensinam. "Não sonhava que as soubesse fazer", diz. "Li muito. Aprendi inglês às custas de ler aquelas coisas todas", conta Alfredo, que começou por construir um cavaquinho, um bandolim e dois ou três violinos ("Também toco") até chegar à sua primeira guitarra portuguesa.

"Havia um construtor em Costa Cabral que era uma referência. Eu era miúdo, comprei uma viola muito fraquinha e alguém me disse 'Vai ali a um senhor que ta arranja para poderes tocar'. E eu lembro-me de ir lá e de ficar completamente maravilhado. Havia gente a tocar e a construir e aquilo deixou-me mesmo maravilhado. Nunca mais me saiu da cabeça." A ideia foi nascendo daí. Disse para o irmão: "Fixe era termos um sítio onde pudéssemos juntar tudo: construção, músicos a testar os instrumentos e a falar de instrumentos tradicionais portugueses."

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ADRIANO MIRANDA
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Nasce em 2012 a Casa da Guitarra, também testemunha activa da história recente do Porto e das suas mutações, que obrigaram a Casa a andar de casa às costas e a adaptar-se às circunstâncias de forma camaleónica. Abriu na Praça das Cardosas, mudou-se para uma loja de rés-do-chão na Avenida Vímara Peres e esteve na Praça de Guilherme Gomes Fernandes até encontrar poiso novamente na Vímara Peres, naquele que já fora um "espaço de má-fama", como nos contou Serafim Teixeira, o irmão que é hoje o frontman desta casa de espectáculos, recentemente vencedora do prémio Best Hidden Gem (Melhor Pedra Preciosa Escondida) de Portugal atribuído pela Tiqets no âmbito dos seus Remarkable Venue Awards 2023.

"Quando viemos para aqui, esta era a zona mais barata da cidade", conta Serafim. "Hoje, é das mais caras e procuradas." Resta pouco dessa Vímara Peres, hoje pejada de turistas e de lojas "monocórdicas" e de passagem obrigatória para a trend do pôr-do-sol desde a Serra do Pilar, na margem sul do Douro. Muitos dos visitantes efémeros acabam por bater à porta da Casa da Guitarra, entalada entre muros históricos e onde hoje, entre sessões de fado (40 lugares sentados para, pelo menos, dois espectáculos diários, às 18h e às 19h30), se conta a história dos violeiros do Porto e um pouco das guitarras portuguesas.

Com o passar dos anos, e com o escalar das rendas, a Casa perdeu metros quadrados e perdeu as aulas de música (de guitarra portuguesa, braguesa, cavaquinho e bandolim) e os concertos acústicos gratuitos, bem como a construção e restauro de instrumentos ao vivo. Por isso, o projecto inicial, admitem os proprietários, está "um bocadinho desvirtuado". No meio da evolução forçada, salva-se a viabilidade e a independência, garantidas pelas receitas do fado (adultos, 18 euros) e dificilmente pela venda de instrumentos. "Era preciso vender muitos instrumentos", calcula Alfredo, com clientes "bons músicos e compositores (até de Hollywood) que ficam encantados". "Um instrumento novo dá novos rumos quando as pessoas estão vazias de ideias. É sempre inspirador."

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O espaço "abandalhado" onde tudo acontece ADRIANO MIRANDA

Guitarras que não têm preço

Na oficina, Alfredo vive rodeado de guitarras de Lisboa, cujo braço termina em forma de caracol; de Coimbra, em forma de lágrima; e do modelo do Porto, com decoração variada, flores, caras, animais, "coisas incríveis" que o violeiro já apanhou. "Esta guitarra desapareceu quando apareceu a de Coimbra. Tínhamos uma zona na Sé com muitos construtores, um grande pólo que enviava para outros sítios do país. Aparecem assinadas pelo António Durante, que não há muitos anos fechou a última loja na Mouzinho da Silveira", explica Alfredo, com uma Castanheira (Rua do Almada) na mão. "Estão a fechar todas. Não é sustentável vender instrumentos no Porto. É uma pena. Porque o Porto era um mundo. Tinha muitas lojas de instrumentos e boas. E infelizmente estão fechar uma a uma." Quando começou a fazer reparações, apareciam-lhe muitas dessas guitarras, 90% eram do Porto. "Comecei a construí-las também... estas pequeninas."

Alfredo não faz réplicas. Inspira-se nos modelos que lhe passam pelas mãos e aplica pequenas alterações aos seus desenhos. "Regras matemáticas", explica. Divisão e comportamento da corda, harmónicos, intervalos de oitava... "Não percebe de música, pois não...? É o meu gozo, tentar fazer coisas que soem cada vez melhor e explorar estas coisas."

Há quem construa guitarras sem as saber tocar. "Mas que facilita um bocado a vida saber tocar, facilita. Procurar um som que temos na cabeça. Quem não toca, não explora o instrumento na sua extensão toda. Penso 'Esta zona está morta e quero mais intensidade', 'quero mais madeira ou menos'. Tocando, tenho mais facilidade em criar uma cor", justifica, rodeado de pedacinhos de madeira com destino bem traçado. Nogueira, pau-santo, acer... Respiga-os aqui e ali, como se fossem nozes no quintal. Como aquela madeira que comprou ao "senhor marceneiro" que se reformou com noventa e tal anos e deixou um espólio com quarenta e tal anos ("Tinha o preço a que comprou a madeira escrito em escudos na própria madeira", sorri). Ou os pedaços que poderia ter terminado numa urna ("por muito respeito que tenha pelo falecido"). Muitas vezes, se a madeira é "preciosa" e o retalho pequeno, faz as costas em mais do que um bocado. "Um remendo com efeito estético que me permite aproveitar madeira que não servia para nada e que tem um som incrível. Os truques não são meus. Não fui eu que os inventei."

Tardes e noites de fado na Casa da Guitarra ADRIANO MIRANDA
Tardes e noites de fado na Casa da Guitarra ADRIANO MIRANDA
Tardes e noites de fado na Casa da Guitarra ADRIANO MIRANDA
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Tardes e noites de fado na Casa da Guitarra ADRIANO MIRANDA

Desde o século XV documentada em Portugal, a violaria, pode ler-se na exposição permanente na Casa da Guitarra, é uma "actividade de características artesanais cujos conhecimentos foram sendo passados ao longo do tempo de forma oral e de geração em geração. Exige grande perícia, habilidade manual e profundo conhecimento de áreas tão específicas como a botânica e a geometria." "É apaixonante. Cada instrumento é um mundo. O tédio não existe", orgulha-se Serafim a minutos do espectáculo das 18h que evoluirá entre memórias de uma guitarra sem cabeça (construída nas oficinas de Joaquim da Cunha Mello, que terá chegado ao Porto nos anos de 1960), de uma rabeca chuleira (do Baixo Douro), de um bandurrinho ("persistia a prática de alguns violeiros de arrancar os rótulos de instrumentos construídos por outros artesãos ou de sobrepor etiquetas como forma de publicitar o seu trabalho") e de muitos outros retalhos da vida dos cordofones (como aquele que nos diz que o número de trabalhadores nas fábricas de instrumentos musicais era de tal ordem que se promovia a constituição de grupos musicais entre os trabalhadores).

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“Estes instrumentos dão-me muitas lições” ADRIANO MIRANDA

"O [Antonio de] Torres, pai da guitarra clássica moderna, desfazia móveis e aproveitava o que podia", conta-nos Alfredo. "Tem que se procurar coisas novas. E neste caso são coisas novas muito velhas. Tenho aprendido muitas coisas com as reparações. Aparecem muitas coisas, muitas coisas sem interesse nenhum (cabeças partidas ou cavaletes descolados; não me dá muito prazer reparar, mas não há quase ninguém a reparar e acho um crime não reparar e deitar para o lixo) e depois os bastante velhinhos, como este modelo de Lisboa (faz-me pena chamar de Porto, Lisboa ou Coimbra... nomes que se dão) sem data, mas, quando vejo este pedaço de osso colocado para não ferir a madeira, percebo que deve ser de 1870."

Sempre que tinha dinheiro, o jovem Alfredo comprava instrumentos. Demorou até perceber "o milagre de fazer um instrumento inteiro com pedaços de madeira". Cirurgia de barriga aberta. Guitarras em pêlo com recados do mestre aos aprendizes rabiscados nas entranhas. Trabalho de paciência, humidade e calor, reforço e estabilização, cola e acabamento em goma-laca, pedra-pomes, plainas e almofariz. Para a maioria, uma guitarra não passa disso mesmo. "Aparecem-me pessoas com crianças que estão a aprender e partem as guitarras que não valem nada e não têm muito dinheiro. Temos arranjado estratégias rápidas e baratas com entalhes que têm funcionado muito bem." Para outros, a sua guitarra "não tem preço". "São os mais interessantes, onde eu aprendo mais. A minha motivação é o som. É o que me dá pica para fazer instrumentos. Aprendo muito com estes instrumentos. Dão-me muitas lições."

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A exposição permanente da Casa da Guitarra ADRIANO MIRANDA
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