Dependência energética e o paradoxo da mitigação climática (I)

Como é que nos podemos livrar desta dependência? O consumo de energia primária não vai parar de crescer, pese embora o aumento da eficiência energética e o aumento considerável de energia renovável.

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A sequência de artigos de opinião que tenho vindo a publicar no Azul tem como objectivos: a) ajudar a construir uma linha de raciocínio baseado no conhecimento científico sobre as alterações climáticas e os seus impactos; b) contribuir para uma melhor percepção da dimensão das alterações climáticas; e c) consciencializar sobre a dimensão dos esforços e sacrifícios necessários para alcançar um limiar de sustentabilidade.

No último artigo, escrevi que “a transição energética com vista à descarbonização exige que o aumento de produção de energia renovável satisfaça, simultaneamente, o aumento de consumo e a redução de produção de energia de origem fóssil” e que, “à luz da minha visão suportada numa análise matemática, esta via mostra-se-me INSUSTENTÁVEL”.

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Portugal abandonou a produção de electricidade a partir do carvão em 2021 EPA/ Friedemann Vogel

Neste artigo, pretendo iniciar a demonstração dessa evidência, mostrando que, face ao modo de funcionamento da economia mundial, a mitigação poderá ela própria conduzir a mais alterações climáticas. Isto, claro, admitindo que não existirá qualquer mudança do paradigma económico e social, ou seja, sem mudar o business as usual.

A economia mundial, tal como a conhecemos, precisa de crescer. Precisa de crescimentos médios acima de 2% ao ano, por razões demográficas e de prosperidade. E tal como qualquer máquina ou motor, ou qualquer ser vivo, para realizar mais trabalho, para produzir mais, ou percorrer mais quilómetros ou milhas, terá de consumir mais energia. Assim é a economia. Assim dizem as leis da Física. Para se realizar trabalho é necessário energia e para realizar mais trabalho será necessário mais energia. A excepção verifica-se quando há aumentos de eficiência.

Olhando para os dados dos últimos 62 anos, podemos ver como evoluiu o crescimento económico global, e como este esteve associado ao aumento considerável de consumo energético (ver figura abaixo). Claro que houve um aumento demográfico que contribuiu em muito para o crescimento económico. À luz das leis da Física, isso também pode ser considerado energia (a força de trabalho), mas não é essa energia de que falamos, é da energia de origem fóssil. É essa que interessa, a que move a economia mundial.

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Variação das taxas de crescimento da economia mundial (GDP) e do consumo global de energia primária (dados do Banco Mundial e da Agência Internacional de Energia) DR

Sempre que houve um impulso no crescimento económico, houve também um impulso no consumo de energia primária. Quando discriminada por fonte, percebemos que foi principalmente o carvão e o petróleo, e mais recentemente o gás natural, que contribuíram para esse aumento. Não sendo perfeitamente linear a relação entre os dois crescimentos, não podemos apontar (ou talvez sim) que umas vezes foi um que impulsionou o outro e outras vezes o contrário. Mas não é isso que está aqui em questão.

O que interessa é que não se podem “fazer omeletes sem ovos”. Estes dados mostram uma elevada correlação, de tal modo que podemos afirmar que para cada crescimento económico de 3% ao ano nos últimos 62 anos, temos um aumento médio de 2.0% na produção da energia primária. Sendo que, em termos médios, 85% dessa energia foi produzida por fontes fósseis, cuja evolução nos últimos 50 anos foi apenas de uma redução dos 87% na década dos 70 para os actuais 82-83%.

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Correlação entre as taxas de crescimento da economia mundial (GDP) e de aumento de consumo de energia primária DR

É de esperar que, dada esta dependência excessiva das fontes fósseis, um aumento anual de produção de energia primária de 1% ao ano tenha correspondido também a um aumento médio de 0.85% ao ano das emissões de carbono. E é exactamente isso que se verificou nos últimos 62 anos, para um crescimento médio anual de 3% da economia mundial, temos um aumento médio de 2.0% de produção de energia primária e um aumento médio das emissões de 1.8%.

Como é que nos podemos livrar desta dependência? O consumo de energia primária a nível mundial não vai parar de crescer, pese embora o aumento da eficiência energética (que será sempre limitada) e o aumento considerável de energia renovável. A previsão para 2050 é que, face ao aumento demográfico que nos colocará nos mais de 9 mil milhões de pessoas e ao aumento económico das economias emergentes (onde se encontram os países mais populosos), a produção de energia primária irá aumentar cerca de 50% face à década de 2011-2020. O que significa que o mundo terá de produzir anualmente em 2050 na ordem de 240 mil Tera Whatts-hora (TWh).

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Correlação entre as taxas de aumento de consumo de energia primária e de emissões globais de dióxido de carbono DR

Dada esta necessidade de aumento de energia nos próximos 30 anos, a transição energética teria de ser tal ao ponto de mudar por completo esta correlação entre crescimento económico e emissões de carbono que se têm vido a verificar nas últimas seis décadas. Isto corresponderia a uma redução drástica da intensidade de carbono (emissão de CO2 em gramas por cada dólar de GDP).

Mesmo no primeiro ano da pandemia, onde a recessão económica conduziu a uma redução das emissões entre 5 e 7% (há incerteza nas estimativas, porque depende da metodologia usada), esta correlação se manteve. Daí o processo se chamar exactamente “transição energética”, ou seja, mudança do paradigma energético. Mas será possível?

Os mais variados especialistas (virados para a sua especialidade), bem como os políticos, os lobistas e os opinion makers, dizem que sim. A minha análise matemática diz-me que não, que é impossível fazê-lo a nível mundial num tão curto espaço de tempo e de forma verdadeiramente sustentável (vejam-se as análises e conclusões do recente World Energy Outlook de 20023 da AIE).

As razões dessa impossibilidade, de entre outros factores, são: o lento processo de transição tecnológica (face ao que seria necessário); a excessiva dependência da economia sobre as energias fósseis; as complexidades e especificidades das fontes e redes de fornecimento de energia renovável (intermitência, infra-estruturas, alcance da rede, armazenamento, intensidade energética, etc.); a escassez de minerais raros usados nas novas tecnologias (criticidade das terras raras); a complexidade do modelo económico global (elevada inércia e reduzida elasticidade); as necessidades intrínsecas do próprio modelo económico que necessita de crescimento para gerar emprego, riqueza, inovação e prosperidade; e, as inevitáveis crises económicas, guerras e conflitos geopolíticos e geoestratégicos.

A economia sempre dependeu, e continuará a depender, de energia abundante, barata e acessível. Se as energias renováveis não conseguirem, à escala global, satisfazer estes requisitos, as energias fósseis terão de continuar a desempenhar esse papel. Na ausência de estabilidade entre oferta e procura e, de equilíbrio entre fontes renováveis e fósseis, teremos sempre elevada probabilidade de ocorrerem crises energéticas resultantes da elevada insegurança de produção e fornecimento, com consequentes atrasos na transição para a descarbonização.

A inércia do sistema económico, ou momentum do sistema, é tal que não se conseguirá, em apenas 30 anos, mudar de forma tão disruptiva o paradigma energético e implementar uma transição capaz de evitar um aquecimento global superior 2,0 graus centígrados até ao final do século.

A crise que vivemos não é apenas uma crise climática, é também uma crise de paradigma do modelo social e económico global.

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