Carta aberta aos deputados da Assembleia da República

Quando é que os nossos parlamentares, apesar de poderem ser ameaçados, terão a coragem de mudar o enquadramento legal de uma instituição que tem de ser independente, mas não inimputável?

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Numa Carta ao Director publicada em 8/11, resumi alguns aspectos preocupantes da actuação do Ministério Público. Mas a gravidade do problema merece uma reflexão mais aprofundada, incompatível com os mil caracteres de uma coluna de leitor.

Depois de descrever uma grandiosa operação envolvendo 176 pessoas, num documento assinado apenas pelo gabinete de imprensa, a Procuradoria-Geral da República, cujos procuradores nos habituaram a vê-los escrever milhares de páginas em processos que muitas vezes acabam por prescrever devido à sua “complexidade”, leia-se, talvez devido a muitos quilos de papel inútil, surpreendeu o país com um único paragrafo que levou à queda do governo:

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No decurso das investigações surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do primeiro-ministro e da
sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto supra-referido. Tais referências serão autonomamente analisadas no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça, por ser esse o foro competente.

Quer dizer que um organismo praticamente inimputável chamado Ministério Publico (MP), pois a entidade que o devia fiscalizar é esmagadoramente dominado pelos procuradores, nem sequer precisou de se dar ao trabalho de enunciar uma acusação concreta para derrubar um governo. Havia, no mínimo, que dizer ao país se as suspeitas que caiem sobre o primeiro-ministro se baseavam em indícios ou provas, e da natureza dos supostos ilícitos, isto é, não cumprimento da lei, ou se era suspeito de solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, que não lhe seja devida (artigo 372 do Código Penal), ou seja, se havia suspeita fundada de corrupção.

Ora em numerosas situações anteriores o mesmo espalhafato, com recurso a numerosos agentes, foi utilizado pelo MP em “casos” tão graves como, por exemplo, as buscas feitas ao Ministério das Finanças para averiguar da possível entrega ao ministro Mário Centeno de dois bilhetes para o futebol, da devassa da casa de Rui Rio para esclarecer o que já estava esclarecido – pagamento da Assembleia da República a assessores do grupo parlamentar que também trabalhavam para o PSD, ou a constituição como arguida de Luísa Salgueiro, presidente da Câmara de Matosinhos e “apanhada” na vistosa Operação Teia, porque teria cometido o “crime” de escolher uma chefe de gabinete sem concurso público. Que aconteceu aos senhores procuradores que se permitiram manchar o bom nome das pessoas, esbanjar recursos públicos em nome de interpretações pífias da legislação? Estes são alguns exemplos que desacreditam a Justiça e corroem o regime. Mas quanto à ineficácia do MP muitos exemplos podem ser facilmente encontrados, em muitos casos em que o essencial não é beliscado:

Dos 40 mil milhões das chamadas imparidades da banca falida o que foi recuperado até agora? Como foi possível emprestar milhões sem garantias suficientes para permitir, pelo menos, reaver parte desse dinheiro? Como é que o MP não avançou para o confisco dos bens dos beneficiários desses negócios? O mesmo MP que demonstra grande zelo e eficiência quando se trata de abordar casos que possam entreter a opinião pública, fazendo esquecer os milhares de milhões com que todos nós entrámos para tapar os buracos do BPN, SLN, BES etc.

Assistimos a casos em que vimos que grande parte da acusação se baseia em rebuscadas presunções, assente noutras presunções, um monte de lixo judiciário sem rigor, com argumentos que por vezes roçam o ridículo, mas que, apesar disso, alimentam a imprensa com fugas de informação selectivas. Mas mais tarde, às vezes anos depois, são desmontados e caiem por terra quando chegam a um tribunal.

Vejam quem preside, orienta e controla o Conselho Superior do Ministério Público e facilmente perceberão que o curto-circuito corporativo é o garante da impunidade/incompetência que permitiu chegar aonde chegámos. Um organismo cujo plenário é constituído maioritariamente pelos agentes que devia controlar, em que a presidência é da própria procuradora-geral, em que os vogais são os procuradores regionais, em que, num total de 19 membros, 12 são justamente as personalidade cuja isenção e eficácia deviam ser apreciados.

Não admira que todos os falhanços do MP não impeçam os seus procuradores de continuarem impunemente a sua actividade, que em muitos caos parece mais obedecer aos ditames de uma agenda política do que a de salvaguarda do cumprimento da lei.

É à AR que compete legislar no sentido de assegurar a existência de organismo capaz de acabar com uma aberração de controlo, que acaba por gerar uma cultura de impunidade, alterando a composição do Conselho Superior do Ministério Público. Só uma maioria de membros exteriores a qualquer organização pode impedir um enquistamento corporativo, e isso pode ser feito garantindo independência do poder político.

Desde o 25 de Abril, há quase 50 anos, que os recônditos mais bafientos da Justiça não recebem a lufada de ar fresco que Abril permitiu em tantos outros sectores da vida nacional. Porquê?

A possibilidade de ver aberto qualquer processo – basta uma carta anónima –, e o posterior aparecimento da notícia de que o senhor deputado está a ser investigado, dá ao MP uma formidável arma de condicionamento político, garante da continuidade de uma total impunidade.

Quando é que os nossos parlamentares, apesar de poderem ser ameaçados por processos nebulosos abertos durante anos, terão a coragem de mudar o enquadramento legal de uma instituição que tem de ser independente, mas não necessariamente inimputável? Quando é que este tema é encarado de forma corajosa nos programas eleitorais? Ainda não percebemos que o descrédito no regime, a abstenção eleitoral e o crescimento do populismo se devem muito ao falhanço da Justiça?

Se é fundamental evitar a interferência do poder político no poder judicial, não é menos importante evitar o condicionamento do poder político pelo poder judicial; e isso não está manifestamente assegurado.

Precisamos urgentemente de um MP eficaz, eficiente e respeitável; depende do poder político assegurar que finalmente, e na prática, os procuradores respondem não só pelo que fazem, mas também pelo que não fazem e deviam fazer.

Sem Justiça não há democracia e a nossa está gravemente enferma.

Tenhamos a coragem de o admitir.

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