A mesa é só um pretexto para juntar amigos

O melhor deste regime de “casa aberta” é mesmo a certeza de que passa de geração em geração, misturando novos e velhos, rejuvenescendo-nos a cabeça.

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"Enquanto punha a mesa percebi que estava a imitar a mãe em todo o cuidado e criatividade para criar um jantar divertido" EDUARDO MOSER/SANDRADESIGN
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Querida Mãe,

Sabe qual é uma das coisas que a mãe me deu que mais valorizo? A sua capacidade de acolher e receber o seu grupo de amigos e família.

No outro dia, invadi-lhe a casa enquanto a mãe não estava, e fiz aí uma festa de Halloween para as minhas filhas e as amigas delas. Enquanto punha a mesa percebi que estava a imitar a mãe em todo o cuidado e criatividade para criar um jantar divertido e bonito. Sabia que mesmo não tendo comprado nada, ia encontrar guardanapos especiais, copos malucos, taças divertidas nos seus armários, sempre disponíveis, sempre prontos. E enquanto punha cada prato ia-me lembrando de todas as festas hilariantes com os seus amigos. Todos os baptizados e festas de anos com tios e primos.

Nunca percebi os meus amigos que achavam uma “seca” estar com os pais e com os tios. Para mim era sempre o maior dos prazeres. Um sítio onde me sentia segura, amada e, ao mesmo tempo, desafiada a entrar num mundo de adultos com piadas, histórias e gargalhadas. Nunca me senti posta de parte por nenhum deles. Nunca senti que era “nova demais” para ali estar.

Fez-me pensar em como, tantas vezes, queremos programas sem os nossos filhos por perto. Como os privamos destas interacções, de nos verem com os nossos amigos, de partilharem a mesa connosco. Enquanto as amigas das minhas filhas jantavam e ora conversavam comigo, ora imergiam no “seu próprio mundo”, esquecendo-se da minha presença, senti um prazer imenso em saber que a sua casa, tal como a minha, possam ser sempre este lugar de acolhimento para os meus amigos, para os meus filhos e os amigos deles.

Depois pensei, porque é que não fiz isto mais cedo? E mãe, foi nesse momento, que lhe dei mesmo o devido valor: não fiz mais cedo porque até agora estive totalmente assoberbada com os miúdos mais pequenos. Não me apetecia jantar, quanto mais receber pessoas. Mas a mãe tinha-nos a nós e um trabalho a tempo inteiro e, mesmo assim, fazia-o. Com prazer e um sorriso. Criou todas essas memórias connosco e fico-lhe eternamente grata por isso!

Beijinhos


Obrigada Ana, que surpresa tão boa, esta carta! Nós, mães, temos tendencialmente muito mais consciência dos erros e das falhas, porque remoemos sempre que podíamos ter feito melhor, do que das coisas bem-feitas, sobretudo quando são tão naturais para nós como o desejo de estar com a nossa família e amigos. Daí o espanto, mas também a alegria de te ouvir dizer estas coisas.

O melhor deste regime de “casa aberta” é mesmo a certeza de que passa de geração em geração, misturando novos e velhos, rejuvenescendo-nos a cabeça, e ligando-nos para sempre por laços tão fortes que nada os quebra. Ainda bem que “assaltaste” a casa na nossa ausência, e espero que voltes depressa — com as tuas filhas, e as amigas das tuas filhas —, desta vez quando cá estivermos. Também queremos brincar.

Só duas coisas que me ocorreram:

1. Os meus amigos são mesmos especiais, por isso não havia hipótese de ser uma “seca” estar com eles, é verdade, mas muitas vezes o que demove os pais de incluírem os filhos é a presunção que fazem de que os mais novos não gostam, nem têm paciência para um jantar onde todas as gerações se misturam. E, se calhar, excluem-nos, sem lhes dar essa oportunidade. Ou, vendo-os mais calados, tendem até a dar-lhes pretextos para se “baldarem”, quando, na verdade, deviam ignorar o suposto amuo, dando-lhes tempo de se revelarem.

2. Sinto que as pessoas são muito exigentes consigo próprias quando decidem convidar alguém para jantar — acham que a casa tem de estar impecável, que a refeição tem de ser gourmet, na mesa só podem estar os melhores pratos e copos, o que as leva a reduzir as ocasiões em que deixam alguém de fora franquear-lhes as portas. Como se pode ver na fotografia, o teu conceito de “mesa muito gira” — com copos de papel, etc. — revela bem o espírito que por aqui reina. A mesa é mesmo só um pretexto para juntar amigos. E não dizes em que consistiu o menu, é que para horror de muita gente, aposto que foi também aquele que aprendeste comigo: frango assado com batatas fritas de pacote.


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.

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