Um decote, uma obesa e um genocídio entram num bar…

Eu percebo que todos nós vemos o mundo à nossa medida, mas tenho sérias dificuldades em aceitar que tantas pessoas sejam incapazes de compreender que não estamos sozinhos neste mundo.

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No mesmo dia em que Israel bombardeou um conjunto de ambulâncias mesmo à porta do maior hospital de Gaza, Al Shifa, o Presidente da República tem uma intervenção gravíssima com o representante da Autoridade Palestiniana em Portugal, que depois tentou emendar, mas deixando bem claro o seu posicionamento sobre esta guerra, sendo incapaz de pedir o cessar-fogo imediato.

Para mim, tão ou mais grave do que o conteúdo, “desta vez, foram vocês que começaram”, como se fosse uma brincadeira de crianças, é o tom leviano, apressado, e de desprezo com que ele diz “bem, vamos ver o que vai acontecer”, totalmente desadequado à gravidade da situação em Gaza, e que vai transbordando pelo mundo fora, quer com lamentáveis ataques anti-semitas, quer com o lamentável crescimento da islamofobia, que só irão serenar quando pararmos de ver inocentes a morrer aos milhares, ou seja, o fim da guerra.

As declarações já foram dissecadas por vários, e pelo próprio, por isso a mim resta-me lamentar o momento infeliz, e ter esperança que o pensamento dos portugueses convirja no sentido das declarações de António Guterres (e não no posicionamento do Presidente Marcelo) que no meu entender são as que melhor representam a luta por um mundo melhor –​ e para isso foi criada a sempre imperfeita, mas tão necessária, ONU.

Como este momento infeliz chega-nos muito perto de outros momentos infelizes do nosso Presidente, nomeadamente um comentário sobre um decote, e outro sobre uma rapariga com uns quilos a mais, chamou-me a atenção a desproporção (numa altura em que discutir proporcionalidade é tão importante) da comoção da opinião pública que estes episódios despertaram nos portugueses.

A minha reflexão pretende atentar mais nas reacções das pessoas do que no dissecar dos momentos infelizes em si. É impressionante a avalanche de críticas que o caso do decote e da rapariga obesa suscitaram, por comparação com estas declarações sobre a Palestina, que pouco ou nada saíram da famosa “bolha político-mediática”.

Isto a mim, deixa-me mesmo triste, porque é a prova cabal de que nós, portugueses, ainda temos muito pouca vontade de olhar para o mundo. A sociedade posiciona-se com muito mais afinco sobre a clivagem dos decotes, sobre as “bocas” que as pessoas com uns quilos a mais não deviam ouvir, do que sobre aquilo que vários especialistas em direito humanitário internacional definem como genocídio de um povo.

Eu percebo que todos nós vemos o mundo à nossa medida, mas tenho sérias dificuldades em aceitar com ânimo leve que tantas pessoas sejam incapazes de compreender que não estamos sozinhos neste mundo.

Um decote, uma obesa, e um genocídio… podia ser uma piada, mas é só mesmo muito triste que os assuntos centrados no “eu” ocupem tanto mais espaço na cabeça das pessoas, do que os assuntos centrados no “nós”.

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As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel António da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras

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