Dois pontos finais

Estamos a acumular demasiados ódios e isso é mais pernicioso para Israel do que se possa imaginar. Eliminar a Palestina pode ser somente o rastilho de um prenúncio pior.

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Regra geral, as crónicas que tenho lido, cujo intuito é o de condenar a brutal agressão israelita à zona da faixa de Gaza, mantêm um incipit comum, apaziguador de consciências: esclarecem que o Hamas é um grupo hediondo. E é verdade. Ou melhor, as Brigadas al-Qassam​ e alguns militantes do Hamas (porque o Hamas é mais do que isso, e muitos partidários declinam essa violência) são o que de mais diabólico temos visto debaixo do sol. Se fossem exterminados, esse facto não seria de todo repugnante. Ponto final.

E atrevo-me a ir mais longe: julgo que o Islão, pelo fanatismo que daí procede, poderá vir a ser o factor de maior desordem à escala mundial. Mas esta é uma antecipação que pode ser precipitada e, reconheço, preconceituosa. O certo é que as religiões e seus ideários, tomadas de forma literal e acrítica, são fomentadoras das maiores atrocidades.

Em 2013, no contexto de um seminário sobre o Holocausto, no centro de estudos e investigação Yad Vashem em Jerusalém, deu-se o caso de ter tido oportunidade de abordar um reputado jornalista israelita, Marcelo Kisilevsky, a propósito de crimes de guerra perpetrados por Israel, um deles aquele que aconteceu no decurso da operação "Chumbo endurecido" (2009), com vítimas civis. Recordo que Kisilevsky houvera feito uma abordagem política das questões de Israel, Palestina e mundo árabe, conduzindo o assunto para a justificação das intervenções israelitas e sem nunca tocar em assuntos embaraçosos. Depois de me ouvir falar em crimes de guerra, recusou tal absurdo, e quando lhe apresentei as datas e os factos, tornou-se visivelmente incomodado e irritado. Como muitos israelitas, Marcelo Kisilevsky não aceita ser contestado.

Foi ainda em Israel que percebi como os militares israelitas tratavam os palestinianos – com violência verbal e arrogância –, o que, no contexto de ódios acumulados, se percebe. Mais: tive a sorte de poder assistir à prática de um rabino numa sinagoga. Na sala só havia homens. Todas as mulheres, incluídas algumas colegas minhas, tinham sido relegadas para um anexo escuro, com vidraças veladas por cortinas, de onde poderiam espreitar. O próprio culto no emblemático muro das lamentações é a evidência do sexismo judaico: a maior parte do muro é destinada a homens, e uma pequena “faixa” destina-se a mulheres que, sejam israelitas, judias ou ocidentais, são obrigadas a cobrir os cabelos.

A sociedade israelita, dominada pela teocracia judaica, é, efectivamente, cosmopolita: Jerusalém é a Babilónia dos tempos modernos. Contudo, os israelitas não deixam de ser racistas, chauvinistas, anti-islamitas primários, misóginos, arrogantes e narcisistas, preenchidos de um ego que lhes permite acreditar serem um povo superior. São tudo menos o que a moderação do pós-Holocausto aconselharia. Nunca mais esquecerei o rosto de ódio que me dirigiu aquele jornalista, quando invoquei Stéphane Hessel.

Há dias, chegou-me, através das redes sociais, uma mensagem (daquelas que se pretende que sejam partilhadas), assinada por Sebastian Vilar Rodriguez (“Toda a vida europeia morreu em Auschwitz”), em que o autor, no afã de promover a cultura judaica – tecendo loas a Netanyahu –, equipara os prémios Nobel recebidos por judeus (128, segundo ele) aos sete outorgados a árabes/muçulmanos. O argumento é risível: contemos o número de prémios Nobel no continente africano e concluamos, pela mesma ordem de ideias, que se trata de um continente falhado. Já agora, Suécia e Noruega somam 45 galardões, vá-se lá saber porquê. Todos os argumentos para engrandecer ou diminuir um povo são argumentos destituídos de razão, ao nível do ruído futebolístico. Aliás, também os israelitas são gente slant-eyed, isto é, capaz de reduzir o adversário à sua fisionomia biológica e à condição de animal, exactamente como a História tragicamente lhes determinou.

Não é verdade que os israelitas sejam, moralmente, muito melhores, quando comparados com os povos árabes. E, neste momento, quer Israel invoque todas as razões de defesa – repare-se no eufemismo das forças armadas de Israel, designadas Força de Defesa de Israel –, aquilo a que assistimos tem contornos de genocídio e de terrorismo de Estado. Nem os russos bombardeiam assim, indiscriminadamente. A FDI e o regime israelita é terrorista. Ponto final.

As imagens de centenas (chegaremos aos milhares?) de crianças (bebés) trucidadas ou de rosto desfigurado ou em carne viva são insensíveis a boa parte do povo israelita e a muitos órgãos de comunicação ocidentais. Tenho um imenso respeito por Esther Mucznik, com quem tenho aprendido imenso, mas quando a estudiosa afirma que Israel não tem outra opção de se defender, senão atacar desta forma ignóbil, sou levado a pensar que é lamentável ser levado a pensar assim. Esther confunde a dor inefável do Holocausto com um retrocesso à barbárie, pelo branqueamento do belicismo sionista. E é lastimável ainda que a alternativa a ser-se vítima seja ser-se algoz. Estamos a acumular demasiados ódios e isso é mais pernicioso para Israel do que se possa imaginar. Eliminar a Palestina pode ser somente o rastilho de um prenúncio pior.

Gostaria muito de viver num mundo em que Israel fosse viável, lhe fosse garantida a soberania e mantivesse, além disso, um vínculo com a justiça e o respeito pelos outros. Mas não a este preço.

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