Israel é Israel é Israel (e também o seu contrário)

O quilómetro zero do mundo cristão, e judeu, e muçulmano, nunca esteve tão perto, à distância de um voo directo, e assim passou a ser possível a loucura de tentar perceber em apenas 48 horas, ou mesmo menos, o incomparável fenómeno que é Israel. Jerusalém e Telavive não se fizeram num dia, mas viram-se em dois — e fizeram-se planos para muitos mais.

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A Cúpula do Rochedo resplandece no horizonte de Jerusalém: é um dos lugares que fazem desta uma cidade sagrada (e disputada) para as três religiões monoteístas Marji Lang/LightRocket via Getty Images

Israel é aquele lugar que mesmo debaixo de uma chuva de rockets nunca deixará de dançar até às sete da manhã — e também aquele lugar que mesmo debaixo do sol mais bárbaro nunca despirá o sobretudo de fazenda com que às sete da manhã, enquanto algures um terraço em Telavive ainda dança, se apresenta para rezar no Muro das Lamentações. Perceber por que chovem os rockets, ou como é que se pode dançar debaixo deles; perceber o que leva uma comunidade a transplantar-se dos confins do mar Báltico (por exemplo) para o deserto da Judeia sem sequer tirar o casaco (embora arregaçando as mangas), e o que a faz viver em 2019 como se ainda estivéssemos no século XVIII, obrigaria a desmontar peça por peça o monumental puzzle de sobrevivências épicas e barbaridades quotidianas que se pôs a crescer desordenadamente, e em todas as direcções, mesmo antes da criação do país, mesmo antes do nascimento de Cristo. Não se faz num dia, nem mesmo em dois — e dois dias é, desta vez, todo o tempo que temos para Israel.

Assim de repente, de um dia para o outro, Israel é um país tremendo, Israel é um país terrível, Israel é Israel é Israel, para abusar das palavras de uma judia que nasceu nos Estados Unidos, morreu em Paris e entre uma e outra coisa foi cidadã do mundo (mas não viveu para assistir à criação do Estado judaico), Gertrude Stein. Dois dias não chegam para sair do lugar-comum, sobretudo quando o lugar-comum é um emaranhado de encruzilhadas históricas e de volte-faces com demasiados milhares de anos em cima, um país que talvez fizesse sentido boicotar, ou então não, um país tão camaleónico que à mesma hora, praticamente no mesmo sítio, veremos a dançar quase sem roupa e a rezar de chapéu e sobretudo; que à mesma hora, praticamente no mesmo sítio, veremos a desesperar nos checkpoints que vigiam as idas e vindas da Cisjordânia e a folhear novelas gráficas na Sipur Pashut, a livraria mais adorável de Neve Tzedek, bairro bobo de Telavive onde, talvez por causa da presença do Colégio Francês Marc Chagall, o francês parece ser a língua franca (e um subtil marcador de classe social).

Israel é Israel é Israel — e também o seu contrário. Por onde começar a desbravar este quebra-cabeças civilizacional (religioso, político, militar, cultural, filosófico e por aí fora)? Vivian, a guia que nos espera no Aeroporto Ben Gurion, parece ter o mesmo problema: “Porquê tão pouco tempo?”, pergunta, ligeiramente em pânico, enquanto procura encaixar nas entrelinhas do denso programa previamente preparado pelo Turismo de Israel tudo o que não lhe parece aceitável deixar de fora, dispondo-se (e dispondo-nos) a sacrificar refeições e horas de sono em nome de uma introdução menos sumária a Jerusalém e Telavive.

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Algum trânsito depois (são as tais sete da manhã, hora de ponta em geral, hora de ponta na auto-estrada que liga Jerusalém e Telavive em particular), começaremos a desbravar Israel por um fim que também é um princípio — dependendo da perspectiva. É uma lição que vale para tudo, neste lugar ferozmente amado e ferozmente disputado, mas avancemos com calma: temos mais 48 horas para chegar a essa conclusão.

Jerusalém, a sagrada

Monte das Oliveiras, Jerusalém Oriental. Dependendo da perspectiva, este é o lugar de onde Cristo ascendeu aos céus, o lugar por onde o Messias entrará em Jerusalém quando finalmente fizer a sua aparição, o lugar aonde a Kaaba chegará, vinda de Meca, para se unir com o rochedo sagrado onde Abraão quase sacrificou o filho — ou apenas um cemitério. O mais caro do país, pelas razões sentimentais (só que tragicamente esgrimidas como factos históricos) acima enunciadas.

Ao lado, o muezzin chama para a segunda oração do dia, jovens árabes israelitas esperam o autocarro com os seus copos de café descartáveis nas mãos, mas é mesmo aqui que judeus abastados de todos os cantos do mundo pagam fortunas para serem enterrados. Parece uma extravagância, mas não é nada à beira dos milhares de mortos que já terá custado a luta pela soberania sobre aquilo que agora temos à nossa frente, arrastando o nosso olhar, como um íman, para o topo resplandecente de outra das 20 colinas de Jerusalém. Será o preço a pagar por ser “o palco da Bíblia”, como diz Vivian. A Cúpula do Rochedo, explica no seu português admiravelmente fluente, com a naturalidade que não esperaríamos de uma judia laica, “é onde Deus criou Adão e Eva, onde Abraão esteve para sacrificar Isaac”. Muitas convulsões e muitas ocupações depois, Salomão construiria ali o primeiro templo (destruído pelos babilónios), fazendo deste o centro do mundo para os judeus. Muitas convulsões e muitas ocupações depois, Jesus pregaria no segundo templo (destruído pelos romanos), fazendo deste o centro do mundo para os cristãos. E muitas convulsões e muitas ocupações depois, Maomé ascenderia dali em direcção aos céus, fazendo deste não exactamente o centro do mundo para os muçulmanos, mas o seu terceiro lugar mais sagrado. Que colina não sucumbiria ao peso de tantos mitos fundadores? E no entanto Jerusalém ainda está de pé. Nada menos do que esplendorosa, debaixo do sol dourado desta manhã, a luz que lhe assenta melhor.

Vista de longe, a Cidade Velha parece vazia. Só depois de entrarmos por uma das portas da muralha otomana (a última ocupação, dependendo da perspectiva que temos sobre o que está em curso desde 1948) e de nos diluirmos na multidão ganhamos consciência corporal das torrentes de turistas, sobretudo cristãos, e cada vez mais esmagadoramente evangélicos, que quase 2000 anos depois reconstituem os últimos passos da grande superstar do cristianismo, peregrinando do Cenáculo onde terá tido lugar a Última Ceia (literalmente um andar acima da sinagoga onde os judeus veneram o túmulo do Rei David) até à Igreja do Santo Sepulcro onde se acredita que Jesus foi enterrado. Do alto do Monte das Oliveiras, Vivian antecipa as paragens no Jardim de Getsémani, o do beijo da traição (e das oliveiras mais antigas do país), e nas 14 estações da Via Sacra, entre o Pretório da condenação à morte por Pôncio Pilatos e o Monte Calvário da crucificação. Mas também aponta para o Muro das Lamentações e para o Pátio das Mesquitas, onde outras narrativas poderosas de fé e de expiação ganham vida diariamente, acrescentando ainda mais camadas ao denso colosso cultural que é Jerusalém, aqui católico e ali ortodoxo, aqui judeu e ali muçulmano, aqui romano e ali bizantino, aqui arménio e ali etíope, aqui russo e ali alemão.

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Meninos judeus brincam na Cidade Velha de Jerusalém: o centro histórico é um concentrado civilizacional, aqui judeu e ali muçulmano, aqui católico e ali ortodoxo Franco Origlia/Getty Images

Transposta a Porta de Jaffa, transpostos os primeiros vendedores ambulantes de sumo de romã e de sumo de laranja, os primeiros carrinhos com pilhas de tâmaras carnudas e amornadas pelo sol, torna-se finalmente ostensiva, essa cidade demandada por todos desde tempos imemoriais. Três monges franciscanos prostram-se no chão do Cenáculo ao lado de uma Minnie que diz “hello from Jerusalem”, uma multidão interminável de evangélicos asiáticos tenta caber numa minúscula capela da Via Sacra colada a um talho hallal e a uma loja onde manequins vestem fatos de treino de contrafacção, uma judia chora sem parar numa cadeira de plástico diante do mesmo Muro das Lamentações onde outras judias fazem e apagam selfies até encontrarem a pose que terá mais likes no Instagram, um balão vermelho com o Yasser Arafat estampado sobrevoa a Mesquita de Al-Aqsa para vingar as más manhãs em que nenhum muçulmano ali pode rezar (ou isso foi num filme?) — em Jerusalém, os rituais e as proibições sobrepõem-se, tornando tudo impenetrável, confundindo a verdade e a mentira, o sagrado e o profano, os bons e os maus.

As sete da manhã já vão longe. Cai a noite e na zona pedonal de Ben Yehuda as esplanadas estão cheias. Dois homens jogam xadrez num bar para lá de ruidoso, duas mulheres escolhem lenços numa loja de acessórios para judias ortodoxas aberta até muito depois da hora do jantar. E é então que chovem rockets.

Telavive, a profana

Horas antes da partida, uma reportagem do Libération sugere um desanuviamento nas relações entre o Hamas e o Estado de Israel; horas depois da chegada, as cadeias internacionais noticiam que o exército israelita matou sete pessoas e bombardeou vários alvos na Faixa de Gaza, e que o Hamas está a retaliar com centenas de rockets. É tema de conversa na televisão, é tema de conversa no pequeno-almoço. Vivian, que tendo nascido na Europa nunca se habituará a isto, está preocupada com os familiares que passaram a noite em claro a ver aterrar os rockets, mais a sul, junto ao deserto do Neguev, mas também está preocupada com a falta de tempo para nos mostrar como é animado o Mercado Mahane Yehuda. Terá de ficar para a próxima vez. Tal como terão de ficar para a próxima vez os Manuscritos do Mar Morto guardados no Museu Nacional, o cemitério do Monte Herzl onde estão sepultados os pais fundadores do Estado de Israel ou o Yad Vashem, a Arca de Noé do Holocausto, que vemos atrás do vidro da carrinha enquanto rolamos a caminho do próximo destino.

Telavive em 12 horas? Com o itinerário na mão, Vivian faz autênticas piruetas para que nada de verdadeiramente importante fique de fora. Por exemplo o anacronismo que é a colónia de Sarona, fundada por uma comunidade de alemães luteranos ainda no século XIX, quando nada mais aqui haveria do que areia a perder de vista (mas esse deserto era a Terra Santa e eles vinham cultivá-la). Esmagado pelos arranha-céus vizinhos (entre eles o do Ministério da Defesa), o modesto bairro de pequenas casas que hoje parecem de bonecas esteve para ser demolido, mas a sociedade civil mobilizou-se a tempo de salvar 36 exemplares. Num deles, ainda se pode ver em acção “a melhor e mais moderna prensa de azeite” desses tempos muito do-it-yourself que precederam o Mandato Britânico da Palestina — mas apenas como chamariz para os turistas que se misturam com militares de metralhadora ao colo na esplanada do Beit Habad.

O Mediterrâneo faz de Telavive uma cidade mais hedonista Getty Images
A Feira da Ladra de Jaffa é um dos pólos mais animados da vida nocturna de Telavive Michael Jacobs/Art in All of Us/Corbis via Getty Images
No Mercado de Carmel cruzam-se turistas e fregueses habituais Independent Picture Service/UIG via Getty Images
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O Mediterrâneo faz de Telavive uma cidade mais hedonista Getty Images

Impulsionado pela abertura do Mercado Sarona, um multiplex onde é possível obter todos os ingredientes indispensáveis a uma cozinha do Médio Oriente com vista para o resto do mundo (pickles e queijos, vinhos e tahini, pães e azeitonas, frutos secos e salmão curado, mais pilhas e pilhas de halwa, a guloseima de sésamo que se come da Tunísia ao Uzbequistão), a antiga colónia luterana é hoje uma das estações mais obrigatórias (e também uma das mais burguesas) no mapa da boa vida de Telavive. O bairro de Neve Tzedek é outra. Nas suas ruas sossegadas, perfeitas para caminhar (e supomos que para viver também), sucedem-se ateliers de arquitectura e designer shops, mercearias francesas e livrarias com baloiços nas traseiras; por enquanto, a Batsheva, a celebrada companhia de dança de Ohad Naharin, ainda tem ali a sua casa (há planos, polémicos ao que relata o diário Ha’aretz, para que se implante na parte menos privilegiada do Sul de Telavive, ainda por gentrificar).

Entre os dois pólos já gentrificados de Sarona e Neve Tzedek, que pedem outro vagar, Vivian guia a sua comitiva de jornalistas portugueses em modo sempre a andar. Da janela da carrinha, aponta para a Praça Nacional, integralmente projectada pelo arquitecto Oscar Niemeyer durante a sua involuntária escala de seis meses em Israel, impedido de regressar ao Brasil por um golpe militar, e para a antiga Praça dos Reis de Israel, onde Yitzhak Rabin foi assassinado (e que agora tem o seu nome). E continua a apontar: agora a Sinagoga Heichal Yehuda, e mais à frente o Centro de Artes de Telavive, e ainda mais à frente o Museu de Arte Moderna, a sede da Orquestra Sinfónica de Israel e o por vezes politicamente incorrecto Habima, o teatro nacional. Só pararemos na outra ponta da Avenida Rotschild, um extraordinário showcase de arquitectura Bauhaus que faz de Telavive um caso de estudo único a nível mundial (ao todo, serão cerca de quatro mil edifícios, em diversos estados de conservação): erradicada na Alemanha pelo regime nazi, em 1933, a escola de Walter Gropius e Mies van der Rohe floresceu depois no exílio, e particularmente nos Estados Unidos e em Israel.

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Telavive tem uma das maiores concentrações mundiais de arquitectura Bauhaus Michael Jacobs/Art in All of Us/Corbis via Getty Images

Mas a casa onde Vivian nos convida a entrar, no actual número 16 da Rotschild, já cá estava quando a Bauhaus chegou a Israel. Foi aliás uma das primeiras casas da cidade, mandada construir em 1910 por Zina e Meir Dizengoff, que viria a ser o primeiro presidente da câmara de Telavive; e foi aquela onde a 14 de Maio de 1948, seis horas antes de o Mandato Britânico da Palestina expirar, David Ben-Gurion proclamou unilateralmente a independência de Israel, precipitando a primeira de muitas guerras israelo-árabes, e a expulsão ou o acantonamento de comunidades inteiras aqui radicadas há séculos.

Desde então, têm chovido rockets. Mas os clientes habituais do Mercado Carmel não deixaram de ir às compras e os quiosques modernistas de bebidas e street food na Avenida Rotschild continuam abertos até de madrugada. Ao final da tarde, junto ao mar, militares armados passam de trotineta por militantes do jogging em outfits impecáveis, os gatos (sempre muitos gatos) espreguiçam-se nas esquinas e tudo parece cor-de-rosa (porque é cor-de-rosa mesmo, quando o sol se desfaz no Mediterrâneo). A noite pode começar já aqui, em cima da praia. Ou com um copo na muito instagramável Feira da Ladra de Jaffa, antes ou depois de um peixe grelhado numa das esplanadas do velho porto. Ou no Dede, um bar “de bairro” em Florentine onde toda a gente parece conhecer-se (e conhecer música cabo-verdiana). Ou no Kulialma, onde às três da manhã talvez estejamos a dançar não se sabe exactamente o quê ao lado de um Pokémon e de um tigre felpudo.

Mas a noite também há-de acabar, e depois, como sempre, como em qualquer outra parte do mundo, há-de ser manhã. Mas em nenhuma outra parte do mundo, só mesmo aqui, o nadador-salvador começará o dia sozinho no deck, de calções, manto e tefilin, a recitar a passagem do Êxodo em que se conta como há muitos milhares de anos o mar se abriu para que os israelitas pudessem finalmente chegar à terra que lhes tinha sido prometida. Não é uma história, é a História. Aconteceu.

A Fugas viajou a convite do Turismo de Israel

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