Podia ser a nossa mãe

Sei que há bons enfermeiros e que isso une o competente uso da técnica aos bons de coração. Mas desses tenho encontrado poucos, muito poucos. Naquele turno não encontrei nenhum.

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Megafone P3: Podia ser a nossa mãe Alpay Tonga/Unsplash
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Fragilizadas por falta de saúde, por inseguranças e vários tipos de medo, as pessoas que entram nos hospitais são muitas vezes reduzidas a uma espécie de plasticina que se usa e se molda conforme as conveniências, como se não tivessem sentimentos, vontades ou dignidade. Se não é isso que as escolas de enfermagem ensinam, por que motivo tantos enfermeiros assumem a indiferença e a prepotência?

Mais uma manhã de estágio no hospital. Na passagem de turno faz-se referência a uma doente considerada “difícil”, velha, dependente, desorientada no tempo e no espaço. Para muitos, segundo as suas próprias palavras, uma “trabalheira”, um “brinde” que promete demasiado trabalho.

Acabada de chegar fico à toa com os comentários dos enfermeiros com quem devo aprender. À minha frente apenas vejo uma pessoa idosa, frágil, muito debilitada e desorientada que se vai transformando numa espécie de plasticina às mãos dos profissionais de saúde. É manipulada e tocada sem cerimónias e apressadamente, despida, vestida, virada.

As suas queixas são desvalorizadas. Sou invadida por uma enorme vontade de chorar. Podia ser a mãe de qualquer um de nós.

É preciso fazer-lhe a higiene. Precisava de lhe ter perguntado antes: "Vamos tomar banho? Faremos tudo para não a magoar". Mas à minha volta não perdem tempo e tiram-lhe a roupa. A minha pergunta fica engasgada. Sinto que precisa da mão de alguém que a mime, a acalme e lhe diga que estamos do lado dela, que vai correr tudo bem.

Lembro-me da matéria sobre a importância do toque, dos cuidados humanizados. Dou-lhe a mão, acarinho-a, mas dou por mim a fazê-lo a medo, como que às escondida. Depois penso: "Não tens de ter medo de fazer o que sentes.” E assumo: dou-lhe a mão, sinto que acalma.

"Tenho frio", diz-me. "Está quase”, e esfrego a mão no seu corpo para a aquecer pensando que não confiaria deixar um familiar na mesma situação em nenhum hospital. E o grave é que eu sou estudante do último ano de enfermagem.

Sei que há bons enfermeiros e que isso une o competente uso da técnica aos bons de coração. Mas desses tenho encontrado poucos, muito poucos. Naquele turno não encontrei nenhum.

Vesti-a. "Já está mais quentinha?" Não me respondeu mais. Começou a gemer. Ninguém se importou. Um médico entra e pergunta se já foi feita analgesia. “Está a gemer, tem dor, façam paracetamol”, diz.

Fiquei a pensar: o que nos acontece quando saímos da faculdade? Nenhuma faculdade ensina isto. Como chegamos a este estado? Será que sinto esta perplexidade, esta indignação, porque ainda não lido com estas situações diariamente? É o cansaço dos enfermeiros? É a falta de motivação e insatisfação? Não sei. Muitos enfermeiros são atenciosos e simpáticos com os doentes mais “fáceis”, mas no que respeita aos mais dependentes e desorientados, a humanidade perde-se. E não consigo perceber. Ninguém quer estar desorientado. Toda a gente tem uma história, uma vida para contar. E por falta de saúde é reduzida a uma espécie de plasticina a quem, por vezes, nem se pergunta se se pode tirar a roupa.

O que aconteceu aos enfermeiros? Na escola ensinam-nos o bom trato, enquanto também nos dizem que o enfermeiro não pode ser saco de boxe. Eu discordo, o enfermeiro às vezes também tem de saber ser um saco de boxe porque lidamos com pessoas e famílias em situações de vulnerabilidade, de sofrimento e desespero.

O que tenho aprendido é que ser enfermeiro é muito mais difícil do que parece. Um dos requisitos da enfermagem é a forma como olhamos, cuidamos e amamos o outro. Temos de saber amar quem não conhecemos porque só assim poderemos cuidar com qualidade. De alguém que podia ser a nossa mãe.

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