Enfermeiros estão exaustos e quase dois terços já pensou em deixar a profissão

Estudo Nacional sobre as Condições de Vida e de Trabalho dos Enfermeiros em Portugal revelou que mais de 16% dos enfermeiros trabalham mais de 70 horas semanais. Mais de metade dos enfermeiros deseja a reforma antes do tempo e 65% já pensou em mudar de profissão.

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55% dos enfermeiros deseja a reforma antes do tempo e 65% já pensou em mudar de profissão Manuel Roberto

Os enfermeiros estão exaustos, um quarto faz mais de 55 horas de trabalho semanais e muitos tem dois empregos. Estas são algumas das conclusões do Estudo Nacional sobre as Condições de Vida e de Trabalho dos Enfermeiros em Portugal, apresentado esta sexta-feira no segundo dia do congresso da Ordem dos Enfermeiros, que se realiza em Braga. Os resultados mostraram também que quase dois terços já pensaram em abandonar a profissão. O estudo foi desenvolvido em parceria entre a Universidade Nova, o Instituto Superior Técnico e o Observatório para as Condições de Vida e Trabalho para a Ordem dos Enfermeiros.

Segundo os dados, apresentados pelo matemático Henrique Oliveira, “um quarto dos enfermeiros trabalha mais de 55 horas semanais” e “mais de 16% dos enfermeiros trabalham mais de 70 horas”. “É muito elevado”, salientou o responsável pela parte estatística, referindo ainda que 23% dos inquiridos relevou ter mais de uma actividade. Este retrato mostra também que a maioria dos enfermeiros trabalha no sector público e em hospitais, 57% tem horário rotativo e 74% trabalha por turnos. A maioria recebe 1500 euros brutos de ordenado.

Este estudo contou com 7602 respostas, cuja recolha foi feita entre 17 de Julho e 16 de Novembro de 2020. O erro máximo da amostra é de 1,4% e o intervalo de confiança de 99%. Na apresentação das conclusões, Henrique Oliveira salientou que 65% dos enfermeiros afirma sentir-se sempre ou várias vezes por semana fisicamente exausto, 76% sentem falta de mais intervalos, 71% não conseguem descansar nas folgas e que 97,2% não gozam sete dias seguidos de férias há mais de 350 dias.

Henrique Oliveira referiu que “55% dos enfermeiros deseja a reforma antes do tempo, 65% já pensou em mudar de profissão - o que é revelador - e 67% não gostava que o filho fosse enfermeiro”. Os profissionais, acrescentou, apresentam um índice de esgotamento profissional comparável de 3,42, “muito acima da maior parte de outras profissões que estudámos em Portugal”. Já o índice de realização do profissional é inferior ao de outras profissões.

O mesmo salientou, nas conclusões que apresentou, que existe uma elevada percentagem de esgotamento emocional na profissão relacionada com a idade e o tempo de serviço, assim como vários factores de discriminação. 31% dos inquiridos disse sofrer de assédio moral e apenas 32% disse não ter sofrido agressões em contexto laboral – a maior parte das agressões verbais ou físicas são feitas por utentes ou familiares destes, mas também há agressões entre colegas.

Para Raquel Varela, historiadora e membro do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho, “estamos perante horários de trabalho do século XIX”, que são “uma resposta fundamentalmente aos baixos salários”. “A maioria dos enfermeiros não recebe um salário que permite reproduzir a força de trabalho. Com um horário de 35 ou 40 horas [semanais] não permite pagar as contas essenciais”, referiu a coordenadora do estudo durante a apresentação do mesmo, acrescentando que a resposta tem sido o aumento das horas extraordinárias ou a existência de uma dupla ou tripla jornada.

"Horário é incompatível com a saúde”

“Este horário é incompatível com a saúde”, defendeu, lembrando os efeitos conhecidos sobre o aumento do risco de doença nos trabalhadores que fazem horários nocturnos e que não estão a ser compensados em salário ou na idade da reforma. “A maioria dos profissionais não vai aguentar trabalhar até aos 60 ou 65 anos. A resposta tem sido a emigração ou tem sido sair da área da enfermagem, abandonar a profissão. O que antevemos é que ou se manterá fuga pela emigração ou começaremos a assistir neste sector a reformas por incapacidade. Estas condições trabalho vão adoecer estes profissionais antes dos 60 anos”, disse.

Duarte Rolo, membro do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho, explicou que procuraram perceber o que mudou nos últimos 20 anos e o que levou a este retrato. Uma das questões terá a ver “com a alteração das formas de progressão na carreira e a impossibilidade de aceder a lugares de enfermeiros especialistas ou enfermeiro gestor, por causa da suborçamentação e da subdotação das instituições saúde”. “Faz com que os enfermeiros que investiram na sua qualificação se sintam impedidos de progredir e desempenhar todas a suas competências”, salientou.

Outra “preocupação central” destes profissionais é sentirem que estão “a trabalhar sempre com falta de pessoal, aumentando risco para sua segurança e para a segurança dos doentes”. “Outro elemento que parece central é a alterações das relações sociais de trabalho. Antigamente havia um ambiente de entreajuda na equipa. Parece que tem havido uma alteração das relações de trabalho que faz com que não se encontre essa relação de prazer”, referiu Duarte Rolo, dizendo que a forma como o desempenho é avaliado e a existência de quotas é uma das alterações que teve impacto nesta relação entre colegas.

Outra questão que sobressaiu da conversa com os enfermeiros está relacionada com a nomeação de chefias e a relação de dependência que acabam por ter com as administrações das instituições de saúde. “A mensagem que gostaria de deixar aqui, é que não há melhoria da situação dos enfermeiros que não passe pela transformação da organização do trabalho”, concluiu.

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