Se a esquerda atua como a direita

Por que motivo uma autarquia de orientação “comunista” recorre à repressão policial, ao uso dos caterpillars e permite que várias famílias tenham as suas casas destruídas diante dos seus olhos.

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A 17 de outubro recomeçaram as demolições e os despejos no Bairro da Jamaica, no Seixal, onde a Câmara Municipal é liderada pelo Partido Comunista Português. De manhã cedo, a polícia, armada com equipamento antimotim, recebeu ordens para fechar completamente o bairro, permitindo apenas a entrada de caterpillars. Além disso, foi elaborada uma lista de residentes que continha os nomes das pessoas autorizadas a circular no bairro. A militarização do bairro foi terrível, e amigos, familiares, pessoas solidárias e jornalistas foram mantidos afastados da ação policial. Com base nas informações que conseguimos obter, cerca de 30% dos habitantes do lote 8 viram negados o realojamento, ficando várias famílias com crianças pequenas sem abrigo nas ruas.

Questiono-me por que razão uma administração local liderada pelo Partido Comunista age de forma tão violenta, recorrendo às piores práticas da direita, como a militarização do espaço urbano, ameaças e listas de proibição de circulação no bairro. São ferramentas típicas da pior direita. Pergunto-me porque não é possível encontrar alternativas para resolver questões sociais, a partir de uma administração liderada por um partido que baseia os seus ideais de justiça e liberdade no 25 de abril de 1974. Pergunto-me por que motivo uma autarquia de orientação “comunista” recorre à repressão policial, ao uso dos caterpillars e permite que várias famílias tenham as casas destruídas diante dos seus olhos.

Não se trata de idealizar estas habitações, mas uma habitação precária é melhor do que não ter habitação. A grande questão é porque é que uma administração liderada pelo PCP não escolhe um caminho alternativo, porque não opta por mudar de direção na prática política, dando sinais de que estes processos podem ser conduzidos de outra forma. Por exemplo, um partido que se chama “comunista” poderia organizar assembleias de bairro durante vários meses, abrir um debate democrático com os moradores, criar canais de diálogo e conduzir um inquérito, a fim de não destruir os laços de vizinhança no processo subsequente de realojamento.

Portugal tem um dos melhores processos de democracia participativa revolucionária na sua história: o SAAL, após o 25 de abril. Pelo contrário, a Câmara Municipal de Seixal escolheu seguir o caminho que Inês de Medeiros, do Partido Socialista, escolheu em outubro de 2022 no bairro Segundo Torrão, em Almada, ou que a autarquia PS de Loures escolheu na zona de Talude em fevereiro deste ano.

Sim, também o Partido Socialista adotou métodos típicos da direita há muito tempo, mas esta é uma história diferente, e é suficiente dizer que, apesar das reuniões e promessas com a ministra da Habitação, as pessoas do Segundo Torrão e Talude ainda estão sem uma solução habitacional adequada.

Porque é que o poder político envia esquadrões de polícia armada e caterpillars contra famílias pobres? Porque é que o Partido Comunista não compreende as interseções entre a questão de classe, raça e género que existem no Bairro da Jamaica? E essas contradições somam-se à questão urbana que já existia, mas que explodiu nos últimos anos.

O filósofo marxista francês Henri Lefébvre, teórico do “direito à cidade”, afirmava que o principal problema da política é que ela não muda a vida quotidiana e não tem impacto útil na vida das pessoas. É uma política ao serviço de outras lógicas, as do mercado imobiliário e não as dos direitos humanos, dos interesses das pessoas comuns, da maioria da classe trabalhadora do século XXI.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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