Haverá um depois do Hamas e de Netanyahu

Não é tolerável que a UE não se empenhe em fazer respeitar a soma de resoluções da ONU sobre a coexistência de Israel e da Palestina e em não entregar o futuro aos fanáticos de ambas as partes.

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No passado dia 19, David Issacharoff, nascido em 1995 e editor na versão inglesa do Haaretz (um dos principais jornais de Jerusalém, fundado em 1918, tradicionalmente independente e secular), publicou ali um texto de opinião intitulado “Faço parte da geração perdida de Israel”. Escrevia ele que a sua geração – “a mais atingida por esta guerra e a que mais lidará com as suas consequências” – cresceu “sob Netanyahu, sob ataques terroristas e sob a ocupação”, sempre ouvindo do poder que o conflito com os palestinianos era “gerível”.

Na data em que ele escrevia, 350 mil soldados, incluindo reservistas, aguardavam ordens para iniciarem a “missão impossível” de exterminar o Hamas na Faixa de Gaza. E ali, onde metade dos 2,3 milhões de palestinianos têm menos de 18 anos, os jovens também não tinham qualquer futuro viável, nem sabiam se sobreviveriam a mais esta guerra.

No seu serviço militar, Issacharoff esteve em longas missões na Cisjordânia, nas fronteiras com Gaza e com o Líbano. Quando o terminou, recusou-se a ficar como reservista para não ajudar a “perpetuar a violência da ocupação” e “um regime que só sabe viver em apartheid”. Ainda há semanas, estivera nas massivas manifestações contra o governo Netanyahu de extrema-direita e a sua tentativa de submeter o poder judicial. Para ele, o Hamas continuará a crescer enquanto Israel não “estender a mão aos palestinianos que querem a paz”.

Ao lê-lo, foi-me impossível não recordar Amos Oz, sionista assumido mas inimigo de fanáticos, que, nascido em Jerusalém, viveu aos 9 anos a guerra de 1948. A seguir ao Yom Kippur fundou o Peace Now (Paz Agora) e não mais deixou de ser acusado de traidor pelos belicistas de Telavive e promotores dos colonatos na Cisjordânia. Mas tornou-se numa das vozes mais respeitadas da literatura israelita contemporânea.

A imprensa europeia que tem coberto a “guerra contra o Hamas” bem poderia oferecer-se uma vasta pool (difusão partilhada de textos de diferentes fontes e origens) que permitisse aos europeus ler e ouvir as múltiplas vozes que, também em Israel, se erguem contra a política actual do Estado judeu, porque é sobretudo a esta que se deve o intolerável vazio de soluções que permitiriam a jovens palestinianos e israelitas imaginar um futuro liberto das guerras de extermínio.

Só o regresso ao reconhecimento mútuo de dois Estados soberanos, Palestina e Israel, com fronteiras apaziguadas, e a partilha de Jerusalém como capital de ambos – objectivos que agora parecem longínquos – permitirá, feito o terrível luto pelo que está a passar-se hoje e se passará amanhã, ressuscitar a esperança em que, um dia, volte a haver paz entre os dois povos. Se tal caminho não voltar a ser poderosamente trilhado, organizações terroristas como o Hamas, o Hezbollah e sucedâneas da Irmandade Muçulmana ou do Estado Islâmico, que lutam pela aniquilação de Israel, não deixarão, apoiadas pelo xiismo iraniano, de tentar, por todos os meios, apropriar-se da “causa palestiniana”, como antes fizeram sucessivas dissidências da Fatah, da Setembro Negro à Abu Nidal et passim.

De momento, o objectivo principal destas organizações é impedir qualquer aproximação entre Israel e os Estados árabes, como a que recentemente se esboçava com a Arábia Saudita. E o Hamas conseguiu-o, com os massacres de civis israelitas a 7 de Outubro.

Por que razão, a não ser o medo de insurreições internas, desistiram o rei Abdallah II, da Jordânia, o presidente Abdel al-Sissi, do Egipto, e Ahmoud Abbas, da Autoridade Palestiniana, de se encontrarem com Joseph Biden durante a sua visita-relâmpago ao Próximo Oriente? E no entanto foi ele, usando o poder de influência que só os EUA têm sobre o governo israelita, que conseguiu a promessa de abertura condicionada da fronteira de Gaza com o Egipto para que alguma ajuda humanitária pudesse entrar na Faixa, e que provavelmente alterou os planos de Netanyahu para a ofensiva terrestre dada como iminente desde 7 de Outubro. Entretanto, que fez a Europa?

No seu texto, Issacharoff lembrava ter nascido um mês antes de Yitzhak Rabin ter sido assassinado por um judeu de extrema-direita que conseguiu liquidar os esforços de paz que o então primeiro-ministro de Telavive conduzia, no âmbito dos Acordos de Oslo. Eu, um português que tem a idade do Estado israelita tal como hoje o conhecemos, e que toda a vida só acompanhou de longe as sucessivas tragédias israelo-palestinianas, sinto-me na obrigação de recordar a enorme responsabilidade que a Europa tem na falta de solução de um conflito que nunca parou de ressuscitar das suas cinzas e de se eternizar em novas cenografias, sempre mais mortíferas do que as anteriores.

Foram os pogroms na Europa Oriental e na Rússia que no séc. XIX alimentaram o sionismo; foi a declaração de Balfour de 1917 que prometeu um lar israelita na Palestina; foram o Holocausto e o anti-semitismo europeu que geraram o Estado judeu; foi da luta contra o protectorado britânico que ele nasceu. Hoje, 75 anos depois da criação de Israel, não é tolerável que a União Europeia, através da sua Comissão, do seu Conselho de chefes de Estado e de Governo e do seu Parlamento, não se empenhe, desde 7 de Outubro, em repor sobre a mesa, com total veemência, a soma de resoluções da ONU sobre a coexistência de Israel e da Palestina, a obrigação extrema de as fazer respeitar e de não entregar o futuro da região aos fanáticos de ambas as partes, que, de momento, o tomaram em mãos.

A política europeia para a questão israelo-palestiniana não pode limitar-se a sustentar o direito de Israel a defender-se dos terrorismos islamistas e à promessa de triplicar o apoio humanitário à Palestina, o que só alimenta os status quo locais. Tem de exprimir com clareza um futuro desejável para a região e de agir deliberadamente para o tornar possível.

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