Sorte e o privilégio de falhar

Precisamos de mais Cátias do Bairro 2 de Abril, Nininhos da Curraleira e Da Weasels de Cacilhas, precisamos de garantir a igualdade de oportunidades.

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Megafone P3: Sorte e o privilégio de falhar DR

No passado domingo, dia 1 de Outubro, A Garota Não subiu ao palco para receber o Globo de Ouro de melhor intérprete. Como discurso de agradecimento leu-nos um pequeno poema, que não só reflecte sobre a situação drástica e em crise que vivemos, como também se atira a conceitos como a meritocracia, um mito que nos tentam vender como verdade.

“O mérito mede-se a partir dos dentes, das notas do colégio ou da demagogia? Obrigada por esta oportunidade, um Globo de Ouro nas mãos de um ser tão falho. Há quem tenha muita sorte. A sorte, a mim, tem-me dado muito trabalho.”

A sorte, na maioria das vezes, é estar no lugar certo à hora certa, com as pessoas certas, portanto é fácil de perceber que essa sorte está muito menos relacionada com o acaso do que com o acesso a lugares, eventos e oportunidades. É preciso reconhecer que o ponto de partida influencia, de forma brutal, o ponto de chegada de cada um de nós.

E é no trajecto que se faz entre estes dois lugares que percebemos que o mérito é uma fábula, que por mais ou menos tumultos que encontremos pelo caminho, nem todos temos os meios necessários para prosseguir em frente, nem todos temos o privilégio de falhar.

Já em 2016 o The Guardian nos falava de uma classe teatral cada vez mais dominada por uma classe social economicamente privilegiada, não porque têm mais mérito do que os restantes, não porque o seu trabalho seja mais válido, mas porque têm tempo. Têm, principalmente, a segurança monetária para poderem explorar todo o seu potencial, enquanto os outros vão ficando para trás, a tentar sobreviver, a tentar não entrar em colapso.

A Phoebe Waller-Bridge disse-o, em 2019: “Não é como se o meu privilégio tivesse criado Fleabag. Fui eu que criei Fleabag, mas num ponto da minha vida em que pude sentar-me a escrever.”

E é isso, muito poucos são aqueles que têm o tempo físico e emocional para se dedicarem à criação artística, poucos são aqueles que têm a possibilidade de falhar, sem que isso afecte a sua vida. Como é que alguém pode alguma vez explorar todas as suas possibilidades, se se encontra preso a trabalhos precários e situações gritantes de instabilidade económica e social?

É por isso necessário trazer para a discussão este conceito, o do privilégio de falhar, porque se, nos anos 1980, Beckett nos dizia “tenta outra vez, falha outra vez, falha melhor”, é cada vez mais importante perguntarmo-nos quem é que, ainda nos dias de hoje, tem essa possibilidade de falhar continuamente e prosseguir e como é que fazemos para equilibrar este tabuleiro. Não podemos permitir que a visão artística e cultural da nossa sociedade fique cada vez mais afunilada num grupo, enquanto os outros continuam a ser atirados para as sombras.

Portanto, não, o que ouvimos no domingo não foi um elogio à meritocracia, foi um grito de alguém que reconhece que o jogo não está estruturado de forma adequada, um jogo que continua a beneficiar os naturalmente com sorte, enquanto apaga, pela força da vida, a luz de tanto potencial que temos por aí espalhado.

Precisamos de mais Cátias do Bairro 2 de Abril, Nininhos da Curraleira e Da Weasels de Cacilhas, precisamos de garantir a igualdade de oportunidades, para que não me baste os dedos de uma mão para enumerar os artistas que reflectem a maioria do país.

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