A vida nas cidades mostra que clima e habitação não são assuntos separados

Casa para viver, planeta para habitar. Manifestação deste sábado entrelaça problemas que têm raízes no mesmo sistema. A ligação entre crises habitacional, climática e do custo de vida “é inequívoca”.

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Muitas hortas comunitárias ficam em risco por causa do negócio imobiliário. Na imagem, horta urbana em Carcavelos oxana ianin/ARQUIVO
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Este sábado, as manifestações agendadas por todo o país têm uma dupla convocatória: Casa para Viver, Planeta para Habitar, numa convergência das plataformas Casa para Viver e Their Time to Pay em torno do direito à habitação e da justiça climática, contra a precariedade e o aumento do custo de vida. Esta fusão, defendem os activistas, acontece porque ambos os problemas têm uma mesma raiz: “O sistema que põe o lucro à frente do bem-estar das pessoas é o mesmo.”

Ignorar este cruzamento seria uma “maneira simplista e ingénua de olhar para as coisas”, nota Catarina Bio, activista da Greve Climática Estudantil, um dos colectivos que participam na organização da manifestação. “É por isso que os ministros se reúnem com frequência. Sabem que as coisas estão interligadas”, continua.

“O sistema que permite que haja pessoas que têm dezenas de casas a preços exorbitantes enquanto outras pessoas têm de viver em tendas no meio da rua é o mesmo sistema que, por exemplo, prefere que continuemos a consumir gás metano, aumentando os custos de energia”, descreve a activista. Com o dominó do mundo globalizado, logo a crise do gás se converteu numa crise do custo de vida.

“À medida que a crise climática se vai tornando cada vez pior, vai haver cada vez mais pessoas desalojadas”, nota ainda Catarina Bio. Além disso, é preciso olhar para as ameaças que estão a tornar-se globais. “A crise climática é uma das maiores causas de refugiados do mundo”, salienta a estudante de Direito.

É tempo de as empresas pagarem

Estamos a viver a crise mais aguda da história da humanidade. Esta tem como raiz o mesmo sistema que está a provocar a crise habitacional. Para além disso, sem resolver a crise climática, todas as crises sociais, incluindo a crise habitacional, apenas se agravarão”, lê-se na convocatória. A ligação entre as crises habitacional, climática e do custo de vida, afirmam, “é inequívoca”. Esta fusão de dimensões, contudo, não foi pensada assim desde o início na organização do protesto.

A história começa nos bastidores, quando os membros portugueses da plataforma Their Time to Pay (É Tempo de Pagarem) – que junta movimentos de justiça climática, de habitação e de luta contra a pobreza – estavam a conjecturar uma manifestação para o dia 30 em Portugal, depois da convocatória para um protesto global contra a crise do custo de vida e a crise climática. O protesto faz cinco exigências: controlo dos preços, fim dos paraísos fiscais, electricidade 100% renovável até 2025, transportes públicos gratuitos e habitação pública.

Só que, enquanto este protesto não tinha ainda sido anunciado, foi marcada a data da nova manifestação da plataforma Casa para Viver: 30 de Setembro. Foi preciso voltar um pouco atrás e, em assembleia, as associações do Casa para Viver concordaram em unir as duas lutas, acrescentando um “Planeta para Habitar” ao nome da manifestação.

O casamento entre habitação e clima, no entanto, não é de agora. A plataforma Casa para Viver foi criada no início do ano por vários colectivos. “Alguns deles, como a Habita ou o Stop Despejos, já têm um histórico de alianças e acções conjuntas com o Climáximo”, conta Anselmo Cruz, da Habita, outro dos porta-vozes da manifestação.

Justiça climática

Talvez recorrendo à expressão “justiça climática”, no sentido da garantia de equidade para todas as pessoas (em particular as mais vulneráveis) num mundo em mudança estonteante, seja mais fácil reconhecer as dimensões em que o clima está relacionado com as lutas pelo direito à habitação.

“A questão do clima acaba por aparecer como algo complexo e distante, pouco ligada ao local”, reconhece Anselmo Cruz. Mas, para si, a interligação entre ambos os temas é clara.

O combate à pobreza energética, uma das grandes causas dos activistas do clima, está também no centro das reivindicações por uma habitação digna. “Todos os anos temos mortes por frio ou por calor”, relembra o activista de 28 anos.

O problema é ainda mais agudo no caso da habitação social, com casas muitas vezes construídas numa óptica de redução de custos, sem condições de aquecimento e onde cedo se encontram manchas de humidade. Há várias “questões de saúde associadas a habitações baratas”, afirma Anselmo Cruz.

Cidades para quem?

Uma das soluções há muito tempo avançadas pelos activistas do clima – o reforço das energias renováveis e a descentralização da produção eléctrica –​ encontra também um casamento perfeito com as propostas da habitação, tratando-se de fontes de energia barata e que poderiam ser geridas pelas comunidades ou cooperativas.

E os “transportes públicos gratuitos para toda a gente” são também uma reivindicação da habitação? Sim, tendo em conta que as populações se vêem cada vez mais afastadas dos centros das cidades devido à inflação do preço da habitação, e isso não deve ditar a perda do direito a usufruir da cidade – sem a poluição ainda tão agregada aos automóveis. Anselmo Cruz fala ainda da “segregação habitacional”, no sentido da vivência em bairros mais degradados, muitas vezes em territórios onde as condições ambientais estão longe de serem ideais.

Outro espaço onde as lutas se cruzam de forma mais literal é nas hortas comunitárias: esta solução, que beneficia famílias mais vulneráveis e tem também uma dimensão ecológica, está em risco em vários lugares devido à voracidade do negócio imobiliário, que ameaça destruir hortas para construir lá “muitas casas”, refere Anselmo Cruz – “ou então para outro tipo de alojamentos”.

Por fim, o problema do não aproveitamento das casas devolutas, uma reivindicação da luta pela habitação (“há 730 mil casas vazias”, assevera a convocatória), está intimamente ligada à questão climática. A alternativa apresentada “como uma solução central” para o problema da habitação “construir-se novas casas em massa”, descreve Anselmo tem uma pegada ecológica enorme.

“A prioridade tem de passar por assegurar condições de vida, agora e no futuro, e por garantir o bem comum”, conclui a convocatória da manifestação. “A qualidade de vida não se resume a podermos aceder a uma habitação de qualidade, mas também a um bom ordenamento do território, energias limpas, eficiência energética, alimentos de qualidade e cuidados básicos.”

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