Crónica da desumanidade

A ida a esses lugares de genocídio, selvajaria e desumanidade, causa, para além de uma revolta interior, um questionamento que nunca tem resposta: como é possível?

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No quadro das visitas de estudo efectuadas pela Memoshoá, Associação Memória e Ensino do Holocausto, criada em 2009, fui neste Verão com um grupo de professores à Sérvia e à Croácia, países dos Balcãs. Após 14 anos de visitas de estudo em quase toda Europa ocupada por Hitler, nunca tínhamos ido a essa tão importante parte da Europa.

Ambos os países são lindíssimos, nomeadamente a Croácia, com as suas florestas magníficas de um lado e, do outro, banhada pelo azul intenso do Mar Adriático. Mas esta beleza, que atrai milhões de turistas praticamente em todas as estações do ano, também esconde um lado negro da sua história recente.

Esse lado negro tem vários nomes: Jasenovac, campo de extermínio, também denominado o “Auschwitz dos Balcãs”, onde foram barbaramente assassinados sérvios, judeus e ciganos, assim como resistentes croatas, e no qual co-existia um outro campo destinado apenas às crianças, cuja esmagadora maioria não resistiu à fome e aos maus-tratos. Este campo, muito pouco falado e conhecido, foi construído em 1941 pelo regime pró-nazi dominado pelo movimento Ustashe de extrema-direita nacionalista e fascista. No final da guerra, uma comissão servo-croata apontou o número de 1,4 milhões de mortos em Jasenovac.

Stara Gradiska é, entre muitos mais, outro campo infame, criado junto a Jasenovac na mesma data e igualmente pela barbárie ustashe. Destinado especialmente às mulheres e crianças sérvias, judias e ciganas, tratava-se de um campo onde, para além de separarem as crianças das mães, ambas eram torturadas e mortas, muitas submetidas a experiências com o gás dióxido de enxofre e ao Zyklon B, incluindo as crianças que morreram aos milhares.

A ideologia do regime ustache, dirigido pelo fascista Ante Pavelic, era de extrema-direita nacionalista, mas também clerical: segundo Paul Garde, autor do livro Vie et Mort de la Youloslavie, apenas os católicos eram considerados croatas. Quanto aos ortodoxos, “um terço devia ir embora, outro terço converter-se ao catolicismo e um terço morrer”.

Logo no início de 1941, os ustache colocaram-se ao serviço da Alemanha nazi, e “eram piores do que os nazis”, como conta o historiador Gideon Greif: “Eles gostavam de ter sangue nos uniformes”. Tal como constatámos no pequeno museu existente em Jasenovac, os ustashe, para além de armas de fogo, utilizavam também martelos e facas para matar as suas vítimas, com os quais levaram a cabo inúmeros massacres principalmente de sérvios, mas também de judeus, ciganos e resistentes.

A selvajaria ustashe, entre 1941 e 1945, na Croácia, é ainda hoje mal conhecida e lembrada. Os vestígios são poucos e quase invisíveis. Por exemplo, no que foi o campo de Stara Gradiska, hoje moram famílias, eventualmente sem saberem que ali foram assassinadas milhares de mulheres e crianças, porque nada está escrito em lugar nenhum. Isso deve-se sem dúvida à tentativa de apagar uma história que ninguém deseja guardar na memória.

A ida a esses lugares de genocídio, selvajaria e desumanidade, causa, para além de uma revolta interior, um questionamento que nunca tem resposta: como é possível? Como foi possível e como continua a ser possível? Vale a pena ir a esses espaços de desumanidade absoluta?

Para um amigo com quem conversei recentemente, um amigo que, apesar de ser uma pessoa interessada e relativamente conhecedora, nunca visitou nenhum destes lugares, a resposta é não. Não é necessário, porque, em sua opinião, sabemos tudo o que se passou e passa através das mil formas comunicação que existem hoje.

Pois sabemos, mas o facto é que nem a leitura, nem os filmes e muito menos as redes sociais nos conseguem pôr na pele das vítimas, nem a partilhar um pouco do seu sofrimento. Visitar esses lugares de derrota da humanidade dá-nos a dimensão inesgotável da crueldade, mas também a intranquilidade com que a devemos observar.

Há uns anos, uma ex-directora do campo de Auschwitz, quando questionada se o seu esforço durante anos para consciencializar os jovens que visitavam o campo tinha resultados, respondeu-me simplesmente: “Não sei, mas não temos alternativa”. É isso mesmo…

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