A Leste tudo de novo (e não só) no BEAST

Sexta edição do festival dedicado ao cinema da Europa de Leste começa esta quarta-feira no Porto, e propõe redescobrir a obra da injustamente esquecida Ester Krumbachová.

Foto
The Murder of Mr. Devil, de Ester Krumbachová, data de 1970. Pouco depois estava na “lista negra” na repressão pós-Primavera de Praga cortesia beast
Ouça este artigo
00:00
04:36

Para obviar ao desconhecimento que ainda temos do cinema que se produz para lá da antiga “cortina de ferro”, o BEAST - Festival Internacional de Cinema da Europa de Leste propõe, a partir desta quarta-feira e até domingo, 1 de Outubro, divulgar cinematografias que só a espaços pontuais chegam ao nosso contacto. Trata-se da sexta edição deste evento que este ano faz a sua estreia no Batalha Centro de Cinema, mas se prolonga igualmente para os espaços do Passos Manuel e do Trindade e da Casa das Artes.

A abertura faz-se esta noite (Batalha, 21h15) com um programa de três curtas-metragens da Eslovénia, país em foco na edição 2023 — duas animações, Granny’s Sexual Life, de Ursa Djukic, e Steakhouse, de Spela Cadez, e a ficção Irmãs, de Kukla. O foco esloveno incluirá um cine-concerto (Batalha, quinta-feira 28, 21h15) onde Ivo São Bento irá sonorizar ao vivo a primeira longa-metragem realizada na Eslovénia, In the Kingdom of the Goldhorn (1931), de Janko Ravniko; o documentário de Boris Petkovic LGBT_SLO_1984 (Trindade, sexta-feira 29, 19h), sobre o movimento LGBT naquele país; e um programa retrospectivo de Karpo Godina, nome central da Black Wave jugoslava, com oito curtas feitas entre 1965 e 1972 (Casa das Artes, sábado 30, 18h).

É pela liberdade formal e criativa que a Black Wave procurava em pleno “cinzentismo” da Europa de Leste na turbulenta década de 1960 que chegamos ao momento mais interessante deste BEAST: o programa dedicado à checoslovaca Ester Krumbachová (Brno, 1923 - Praga, 1996), verdadeira “eminência parda” da nova vaga checa. Escritora, cenógrafa, figurinista, directora criativa, Krumbachová é mais recordada por ter co-escrito um dos filmes-chave dos novos cinemas de Leste, Jovens e Atrevidas (1966), de Vera Chytilová.

Foto
O documentário de Boris Petkovic LGBT_SLO_1984 cortesia beast
Foto
Granny’s Sexual Life, de Ursa Djukic cortesia beast

Mas a sua influência foi muito mais abrangente do que isso: central na vida artística de Praga na fervilhante década de 1960, Krumbachová é indissociável dos filmes de Jan Nemec, com quem foi casada entre 1963 e 1968, entre eles o controverso A Report on the Party and the Guests (1966), adaptado de uma novela sua, e Os Mártires do Amor (1967). A sua única realização, The Murder of Mr. Devil, data de 1970, e deveria ter sido dirigida por Nemec se este não tivesse sido colocado na “lista negra” na repressão pós-Primavera de Praga — destino que Krumbachová também teria mais tarde.

É este título injustamente esquecido que o BEAST propõe redescobrir (Trindade, quinta-feira 28, 19h), revelando uma sátira fervilhante e surreal ao machismo enraizado que não perdeu um grama da sua actualidade, colocando uma mulher solteira a tentar seduzir o namorado literalmente do inferno — um boçal egocêntrico e esfomeado que só pensa em comida. A segurança de Krumbachová por trás da câmara, naquela que era a sua primeira e seria a sua única longa-metragem, revela uma mão extremamente segura, um sentido de humor escarninho, provocador, e um pensamento cinematográfico onde tudo, da cenografia estilizada à aparência de programa televisivo feminino dos anos 1970, contribui para ancorar a sátira. Acrescentada à “lista negra”, Krumbachová não voltaria a realizar, e a sua história é contada no documentário que a cúmplice Chytilová lhe dedicou em 2005, In Search of Ester (Trindade, sábado 30, 19h)

Outras propostas do BEAST incluem uma sessão (Batalha, sábado 30, 21h15) dedicada ao programa de produção DocNomads, mestrado pan-europeu em documentário dividido entre a Universidade Lusófona, a Universidade de Artes de Cinema e Teatro de Budapeste e a Luca School of Arts de Bruxelas. Vários dos filmes deste mestrado têm sido premiados em festivais internacionais e o festival irá exibir as curtas May the Earth Become the Sky, da romena Ana Vijdea (exibido no DocLisboa de 2022), Dusk, do húngaro Bálint Biró, All Our Nights, de Nicolle Reale, Viv Li e Zsófia Paczolay, e My Uncle Tudor, da moldova Olga Lucovnicova (que recebeu o Urso de Ouro das Curtas em Berlim em 2021). A destacar ainda a passagem da segunda ficção da eslovaca Tereza Nvotová, Nightsiren, que recebeu o Leopardo de Ouro na competição secundária de Locarno, Cineastas do Presente, em 2022 (Batalha, sábado 30, 19h15).

O festival propõe ainda quatro secções competitivas inteiramente preenchidas por curtas-metragens: East Wave (ficção), East Doc (documentários), Experimental East (cinema experimental) e Anima East (animações), para além de sessões dedicadas ao cinema queer produzido na Eslováquia e na Ucrânia e ao festival polaco Post Porn.

Sugerir correcção
Comentar