Gabriel Abrantes fez um filme de terror “a sério” — quem diria?

Quase a terminar, o MoteLX estreou a segunda longa-metragem do autor de Diamantino. Surpresa: A Semente do Mal é um filme de género puro e duro como raramente se faz por cá.

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A Semente do Mal: incesto e sobrenatural num palácio isolado DR
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É a mesma pergunta que todos os anos se faz quando o MoteLX Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa aposta nas curtas-metragens de género de produção nacional, e tenta reavaliar filmes adjacentes ao género produzidos entre nós ao longo das décadas: existe de facto um cinema de terror (e, mais latamente, um cinema de género) de formato longo em Portugal?

Na edição 2023 que chega ao fim neste domingo, e depois de em anos anteriores o festival ter assestado holofotes sobre Pedro Costa, Tiago Gomes e Frederico Serra ou António de Macedo, o objecto de reavaliação foi o (contudo excelente) Tarde Demais, de José Nascimento (1999), série B seca de carnes sobre quatro pescadores procurando sobreviver ao naufrágio da sua traineira. Um filme que em nenhum momento se aproxima verdadeiramente do cinema fantástico, sugerindo que a organização é capaz de estar já a esticar o elástico do que é o género quase até partir.

A verdade é que, para contrabalançar esse desvio, apareceu uma longa-metragem de terror séria, e a sério, que cumpre os requisitos todos do género e não deixa de ter os obrigatórios momentos pontuais de humor. O que não se esperaria é que tal filme viesse de Gabriel Abrantes, o artista multimédia e cineasta vencedor do Leopardo de Ouro das curtas do Festival de Locarno por A History of Mutual Respect (2010) e do Grande Prémio da Semana da Crítica de Cannes por Diamantino (2018).

E A Semente do Mal, obra mostrada pela primeira vez há uma semana na secção de indústria do Festival de Toronto, no Canadá, e que teve a sua estreia europeia perante um público rendido e apreciador, é tanto mais desconcertante quanto recupera temas e referências que têm percorrido as obras anteriores de Abrantes, desta feita dentro de um esquema convencional de filme de género: um órfão nova-iorquino descobre ter um irmão gémeo de quem foi separado à nascença (Carloto Cotta num duplo papel), e, viajando para Portugal com a namorada para conhecer a família, descobre intimações de incesto e sobrenatural num palácio isolado (na verdade, a Quinta do Vale Flor, em Sintra).

Mais uma vez, Gabriel Abrantes explora a família como espaço de opressão (inclinação que o cineasta assumia ao PÚBLICO já numa entrevista de 2011). Reconhecemos a (omni)presença da tecnologia futurista, o recurso a referências da cultura pop (Marco Paulo e António Calvário na banda sonora), a vontade de deixar sempre o espectador na dúvida: “é a sério” ou “é a brincar”? Não é, e isso é claríssimo, um filme “de autor” (termo do qual gosta de fugir) — e de resto o diletantismo (no melhor sentido da palavra) de que tem feito prova ao longo da sua produção já revelava algum desconforto com gavetas e categorias.

Como se integrará A Semente do Mal na carreira do artista, só o tempo o dirá; para já — e os aplausos da audiência que lotava o Cinema São Jorge na noite deste sábado confirmam-no —, esta sua segunda longa-metragem funciona garantidamente junto do público de género.

Ainda a propósito da 17.ª edição do festival, importa referir uma curiosa co-produção luso-americana exibida também neste MoteLX. Trata-se de Lovely, Dark, and Deep, primeira longa-metragem de Teresa Sutherland, rodada na Serra do Gerês com fotografia do “nosso” Rui Poças e produção do americano radicado em Portugal Josh Waller (ex-sócio de Elijah Wood na produtora Spectrevision, que ajudou a revelar, por exemplo, Ana Lily Amirpour).

É um exemplo da abordagem sensorial, cósmica, que alguns nomes nas margens da produção americana como a dupla Aaron Moorhead/Justin Benson têm explorado, usando como base os desaparecimentos nos parques nacionais americanos para tentar criar uma mitologia a meio caminho entre Stephen King e H. P. Lovecraft. O clima de mal-estar sugerido na primeira metade do filme não é sustentado pelo onirismo obscuro e algo injustificado em que tudo descamba; mas o trabalho de ambientação e atmosfera é notável, e justifica por si só a vista de olhos a uma estreia que precisava de um pouco mais de garra para ir mais longe.

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