Postais de Viena III: O belo Danúbio azul

“Somos um acaso da natureza, uma peculiaridade da evolução, uma gloriosa casualidade”.

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João da Silva
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1.

“Somos um acaso da natureza, uma peculiaridade da evolução, uma gloriosa casualidade”, pode ler-se num vitral no Museu de História Natural de Viena, Áustria, que abriga uma vasta coleção de espécimes e exposições relacionadas com a história natural, incluindo fósseis, minerais, animais empalhados e muitos outros artefactos que proporcionam aos visitantes uma visão fascinante do mundo natural.

“Somos um acaso da natureza, uma peculiaridade da evolução, uma gloriosa casualidade”.

A frase resume toda a minha experiência no museu, que percorri de fio a pavio ao longo de quatro horas, sem conseguir tirar do pensamento a inquietante questão de sermos ou não um acaso da natureza. Terá a nossa existência sido planeada ou predestinada? Ou resultará de uma série de eventos aleatórios ao longo de milhões de anos?

O mistério da vida.

Sabemos (?) que a vida na Terra começou como uma série de reações químicas e que evoluiu ao longo do tempo com o surgimento e desaparecimento de diferentes espécies de acordo com as mudanças ambientais e a seleção natural e que nós, seres humanos, somos parte dessa vasta tapeçaria, complexa e imprevisível, da evolução. Mas terá sido tudo um acaso? Desci a magnífica escadaria do Museu de História Natural de Viena com esta pesada questão às costas e atravessei a cidade por baixo da terra.

2.

Voltei a ver a luz do dia na Estação Donauinsel, posicionada numa ponte por cima do Canal Danúbio, paralelo ao majestoso Danúbio. Atravessei o jardim e distraí-me durante alguns minutos, confesso que com algum espanto, com meia dúzia de massagistas tailandesas (havia um cartaz que as identificava) a macerar o lombo de outros tantos maduros.

Sentei-me na margem do rio e pus os pés de molho, um bálsamo depois das quatro horas de caminhada no museu. Sob o sol de fim de tarde, a questão sobre a casualidade da nossa existência foi-se desvanecendo à medida que a valsa de Johann Strauss II tingia de azul a água acinzentada do Danúbio e me transportava para um salão de baile iluminado por lustres resplandecentes na Viena do século XIX, onde senhoras em vestidos esvoaçantes e cavalheiros em trajes impecáveis giravam ao som de No belo Danúbio azul — é este o título original, inspirado no fecho de um poema de Karl Isidor Beck: “às margens do Danúbio, o belo e azul Danúbio”.

A observar a corrente lenta, interroguei-me demoradamente sobre as histórias e segredos que o Danúbio transporta ao longo dos séculos. A dado momento, vindos não sei de onde, quatro cisnes deslizaram tranquilamente à minha frente como bailarinos num palco líquido e recordaram-me a importância de esqueceremos as dúvidas e interrogações durante algum tempo e simplesmente ser.

O estado de consciência do momento despertou-me para o que se passava à minha volta.

À minha esquerda, a poucos metros de distância, um jovem ensaiava mergulhos acrobáticos para a água, introduzindo uma nota inédita na melodia suave do Danúbio azul: splash. Não desgosto.

Entretanto, pela direita, um rapaz aproximou-se dos degraus esverdeados e escorregadios que desaguam no rio. Segurava uma trela extensível em cuja extremidade um pequeno cachorro ladrava de ansiedade face à iminência de refrescar-se no rio. De repente, o animal puxou a trela, esticando-a, e entrou na água, obrigando o rapaz a acelerar o passo para o acompanhar. Surpreso, o jovem desceu o primeiro degrau (estava seco), depois o segundo, (também seco). Ao terceiro, o tombo.

O Danúbio continuou a fluir no seu leito, indiferente à presença passageira dos observadores temporários do seu espetáculo eterno e às casualidades e peculiaridades que os trazem até às suas margens.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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