Como é viver no Porto sem carro? Pai lança livro infantil sobre mobilidade
O livro Se Essa Rua Fosse Minha, de Peter Füssy, com ilustrações de Thaís Mesquita, fala sobre a dificuldade sentida pela família do autor para se deslocar no Porto sem automóvel.
O ex-jornalista Peter Füssy, recém-chegado ao Porto e pai de um menino de três anos, acaba de lançar o livro infantil Se Essa Rua Fosse Minha, inspirado nas dificuldades sentidas pela família para se deslocar no Porto sem automóvel. Em Portugal, lamenta, a mobilidade nas cidades continua muito aquém do resto da Europa.
"O livro nasceu da necessidade grande que eu senti de falar sobre mobilidade activa, depois de ter morado quase quatro anos na Holanda [Países Baixos] e, em seguida, me ter mudado para o Porto, em Portugal", explica à Lusa o brasileiro de 40 anos, ex-jornalista do portal Terra e da Globo, que trabalha agora em "marketing". À frente de casa onde viviam, em Amesterdão, "havia apenas uma ciclovia e, de seguida, um parque", e mal a família abria a porta, o filho, Tom — com o mesmo nome da personagem principal da obra —, "podia sair correndo sozinho, uma coisa que é totalmente inimaginável aqui".
"Foi baseado nessa experiência que comecei a escrever o livro, e usei uma cantiga brasileira, que é Se essa rua fosse minha, como uma referência também, adaptando para um cenário mais moderno" — cujas ilustrações são inspiradas nas casas da cidade Invicta.
O pai do pequeno Tom conta que, ao chegar a Portugal, sentiu "um retrocesso muito grande nessa questão de mobilidade", uma experiência "muito pior do que imaginava". "Vim do Brasil, antes de morar na Holanda. No meu país, é bastante similar a Portugal, mas a minha expectativa é que aqui estivessem em andamento já, em evolução", lamenta.
Admitindo que "é difícil de comparar, porque a Holanda é uma coisa muito incrível mesmo", Peter Füssy conta que a família de três não tinha carro (andava a pé, de bicicleta, de autocarro, de metro e de comboio), um plano que pretendiam manter quando chegaram a Ramalde, no Porto, há um ano e meio. Porém, logo na primeira saída em família, rumo a Serralves, ainda com o filho num carrinho de bebé, constataram que "o caminho às vezes não tinha calçada [passeio]" e tinham "de andar com o carrinho do Tom na rua, no meio dos carros". Mesmo, "quando tinha calçada, era inacessível", obrigando os pais a levantar o carrinho múltiplas vezes.
Outra questão foi levar o cão até Serralves, já que "o cachorro não podia entrar no parque, que é outra coisa que também que na Holanda é impensável", constatando também que há parques infantis com horários de funcionamento e grades, "um grande choque na liberdade" da criança. "Se você for pensar no Brasil, até que pode ser você tenha alguma razão aí", mas "em Portugal não tem esse nível de pessoas em situação de rua, de pobreza, de violência e de criminalidade" que justifique as grades — uma "coisa muito mais cultural de cercar as propriedades, mais antiga do que realmente necessária hoje".
Ao perceberem que a mobilidade a pé era dificultada, começaram a andar de autocarro, mas a pouca frequência do serviço e horários pouco fiáveis fizeram com que a experiência fosse "inviável". Depois, o uso de TVDE levou a alguns conflitos relacionados com o transporte do bebé e do cão, apesar de terem uma boa experiência no metro, mas que fica a 20 minutos de casa.
Cidades pensadas para os carros
Falando na "diferença brutal" entre as realidades civilizacionais neerlandesa e portuguesa, o também dinamizador do projecto Derrotando o Trânsito observa que, no Porto, "toda a mobilidade é pensada para o carro", e "para o peão e para o ciclista ficam as sobras". Apesar de defender a mobilidade suave, Peter entende "completamente" quem tem dificuldades em deixar os automóveis, "porque realmente tudo é arquitectado, construído, para que essa pareça ser a única saída", reconhecendo que também já foi "essa pessoa".
"O que muda a sua cabeça é realmente experimentar. Se não tiver a infra-estrutura para isso, ninguém vai fazê-lo", considera, frisando que andar de bicicleta no Porto com o seu filho, " tal como no Brasil, é um modo de resistência e de tentar mostrar às pessoas que existe outra opção", apesar de não se "sentir seguro".
Peter Füssy não vê a criação de infra-estruturas de mobilidade suave como um capricho de "liderança ou inovação" cosmopolita, mas antes a sua ausência como uma pragmática "perda de qualidade de vida para toda a população", já que também se melhora a cidade para quem "quiser continuar dirigindo [a conduzir]".
O autor admite ainda que os políticos estejam reféns dos votos dos automobilistas, sendo necessária "coragem de ir contra essa resistência", já que depois de verem as melhorias, "aí a coisa do voto vira, porque as pessoas vão querer votar no político que promoveu aquelas mudanças", esperando ainda um movimento global que leve à mudança nas "cidades mais resistentes".
O uso do carro, considera, também se tornou uma "questão cultural" num "ecossistema pouco "eco"", envolvendo construção civil, indústria automóvel e petrolíferas, com consequências financeiras para os próprios utilizadores, já que "o carro em si tem um custo muito alto de compra, de manutenção, de seguro, de combustível". "Liberando as pessoas desse custo financeiro que é imposto, porque você é obrigado a andar de carro, você também libera as pessoas para fazerem outras coisas com esse dinheiro: lazer, cultura, outro tipo de consumo que as pessoas quiserem fazer", resultando num aumento de "qualidade de vida".
O livro Se Essa Rua Fosse Minha, editado pela Tudo! em português, espanhol e inglês, tem ilustrações de Thaís Mesquita e está disponível na Amazon, dirigindo-se "a crianças a partir dos dois anos com leitura dos pais, e a partir dos seis e sete anos com leitura individual". A narrativa começa em tons cinzentos "para mostrar mesmo que essa é a sensação feita da cidade para carros", evoluindo para tons coloridos à medida que "Tom, o personagem principal, consegue ir mudando e a rua é estruturada, passa a ganhar cores e vida".