Complexidades de Verão

A “importação” de médicos sul-americanos, em especial de Cuba, retomou uma iniciativa cujos resultados nunca terão sido rigorosamente analisados. São legítimas as dúvidas sobre a sua eficácia.

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Depois do sucesso global da Jornada Mundial da Juventude, do impacto da personalidade fascinante e superior do Papa Francisco, que prevalecerá da sua mensagem? Registei: a Igreja é de todos e para todos, um apelo ao respeito mútuo, tolerância e abertura. A segunda, que me recordou Teilhard de Chardin, do caos para o cosmos, é um desafio à nossa responsabilidade pessoal indeclinável num cosmos em evolução. Foi um êxito para o qual muito contribuiu a firmeza e determinação da Igreja Católica Portuguesa e do Patriarcado de Lisboa, das autoridades cívicas e do Estado.

Parafraseando Sua Santidade, teremos também que surfar a onda dos nossos problemas, na saúde, educação, justiça, carestia da vida, etc., cuja continuidade apenas agrava a sua complexidade. Será que o hábil jogo semântico na educação poderá reduzir a inquietação legítima da cidadania? E apontar caminho para solução?

De igual modo, a greve fraccionada dos médicos foi expressão de desencanto e mal-estar num importante grupo profissional essencial na construção do nosso futuro. A persistência dos problemas e a aparente incapacidade de diálogo protela a solução e agrava descontentamento, impaciência e extrema posições. A decisão política é um equilíbrio difícil entre promessas e concretização. Assenta em valores, regras de procedimento, objetivos claros e precisos e no exercício democrático de escrutínio público. Accountability, isto é, o dever de prestar contas, devia ser, para todos, uma exigência. E equidade um princípio orientador para a salvaguarda da igualdade dos cidadãos perante a lei e o seu acesso às oportunidades. Tem uma dimensão adicional: a preocupação de justiça – fairness – que poderemos traduzir por equilíbrio justo e decente – para assegurar os meios necessários, consoante necessidades e circunstâncias.

O risco são decisões apressadas ou pontuais, dissociadas duma visão estratégica, coordenada e integrada. A “importação” de médicos generalistas sul-americanos, em especial de Cuba, é para mim exemplar. Retomou iniciativa passada cujos resultados, nomeadamente na eficácia do SNS e na fixação desses profissionais, nunca terão sido objeto de análise rigorosa. São legítimas as dúvidas sobre a sua eficácia.

Para além do contrato – ao que parece com o Estado cubano que limitará direitos e dificultará fidelização e continuidade em Portugal – haverá promessa de casa de função! Compreendo a discriminação positiva para atrair candidatos, é uma dimensão da equidade perante o desafio das circunstâncias. Mas será decisão justa? Evidencia profunda desigualdade perante potenciais concorrentes nacionais e perante outros grupos profissionais como professores, enfermeiros etc. Ou será que o Estado português se compromete e pode (!) atribuir casa a todos os seus funcionários deslocados da residência habitual?

E uma dúvida. Sabendo como é complexa, difícil e prolongada a Educação Médica, interrogo-me como um pequeno país pode formar tantos médicos com curso e formação especializada, neste caso em Medicina Geral. Ou serão sanitaristas, com formação em Cuidados de Saúde básicos e higiene pública? Em 2020 foi sugerido formação mais reduzida para os médicos generalistas, como forma de conseguir colmatar mais rapidamente essa necessidade. O mesmo objetivo por outro caminho?

A questão financeira tem dominado a contestação destes grupos profissionais. Em artigo recente (L. Valadares Tavares, in Observador) confirmou, na Saúde, que as políticas salariais adotadas têm vindo a acentuar as assimetrias, numa rota de divergência com congéneres espanhóis e britânicos, explicação plausível para o abandono do SNS. Causa relevante na saúde e na educação, mas não exclusiva. Há perplexidade sobre a estratégia para revitalizar o serviço público e como articular com um sector privado em expansão. Na saúde, onde em muitos sectores prevalece ainda visão hospitalocêntrica, como os novos projectos anunciados sugerem, prevalece a necessidade de reforma de fundo em que o objetivo é descentralização, articulação e integração de cuidados clínicos, proximidade com as populações e as suas necessidades.

A articulação com os sectores privado e social parece já não ser anátema no discurso político oficioso. Sempre defendi que o direito à saúde e aos cuidados clínicos requer equidade no acesso compatível com propriedade privada ou social dos meios de intervenção. Mas a experiência mostra que essa articulação funcional é complexa, com estruturas de intermediação como os seguros de saúde público (ADSE) e privados e que um serviço público como referencial de qualidade é indispensável. E custos que podem tornar incomportável a medicina moderna e tecnológica.

Esta articulação deveria ser prioridade de acção, requer trabalho, clarividência estratégica nos objetivos e métodos de intervenção e requer cultura de avaliação e dever de accountability, de todos. Não se compadece com querelas ideológicas, medidas pontuais ou proclamações de ocasião. Tem uma baliza: o interesse público! Exige respeito pelos profissionais, pela dignidade do trabalho e direito a compensação digna, justa e com equidade. Lamento reconhecer, mas temos perdido tempo e oportunidade!

Post-Scriptum: Uma boa notícia: as universidades portuguesas subiram no ranking mundial e a minha Universidade de Lisboa mantém liderança

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