Itália: Supremo diz que requerentes de asilo não são “clandestinos” e condena Salvini

Partido de extrema-direita do vice-primeiro-ministro italiano condenado a indemnizar duas associações que trabalham com imigrantes. Decisão abre precedente.

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A Liga, de Matteo Salvini, recorreu, mas acabou condenada no Supremo GIUSEPPE LAMI/EPA
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A decisão dos juízes do Supremo Tribunal italiano encerra um processo iniciado há mais de sete anos, mas “também diz muito sobre a política actual, em particular sobre o hábito inaceitável de se continuar a usar o termo ‘clandestinos’ para os que chegam ao nosso território, seja como for, em busca de protecção”, comentou o advogado Alberto Guariso. Guariso apresentou a queixa contra a Liga, de Matteo Salvini, em nome da Asgi (Associação para os Estudos Jurídicos sobre a Imigração), em 2016, depois de o partido ter convocado uma manifestação contra a chegada de 32 requerentes de asilo a uma paróquia com cartazes onde se lia: “Saronno não quer os clandestinos”.

A Asgi e outra associação, a Naga (que presta assistência sanitária, social e legal aos cidadãos estrangeiros), processaram o partido de extrema-direita, actualmente parte da coligação de Governo de Giorgia Meloni, defendendo que descrever os requerentes de asilo como “clandestinos” ou “imigrantes ilegais” constitui “assédio discriminatório” e pode “ofender a dignidade da pessoa e criar um clima humilhante, degradante e ofensivo”, recorda o jornal católico Avvenire. O partido recorreu duas vezes da condenação, até chegar ao Supremo.

No acórdão desta semana, definitivo, lê-se que “os estrangeiros que entram no território do Estado italiano porque correm risco efectivo, em caso de regresso ao país de origem, de sofrerem ‘graves danos’, não podem em nenhum caso, ser considerados irregulares e não são, por isso, ‘clandestinos’”, cita o diário Corriere della Sera.

A Liga argumentava que o recurso a este termo – num cartaz – devia entender-se “no direito à liberdade de expressão da política”, mas para o tribunal a liberdade de fazer política “não pode ser equivalente, ou prevalecer, sobre o respeito pela dignidade pessoal dos indivíduos”. “Alimentação, alojamento e vícios pagos por nós. Enquanto isso, as pensões do povo de Saronno estão a ser cortadas e os impostos a ser aumentados”, diziam ainda os cartazes usados pela Liga na Primavera de 2016, nesta pequena cidade da Lombardia.

Na altura, o primeiro-ministro era Matteo Renzi, de centro-esquerda, e Salvini estava na oposição. E como lembra o Corriere, lançava com frequência tiradas com a mesma linguagem dos cartazes de Saronno: “Acabou o recreio para os clandestinos” e “Os clandestinos que se preparem para fazer as malas”, são exemplos.

"Uma montanha de indemnizações"

Ferozmente nacionalista e anti-imigração, o dirigente viria a ser ministro do Interior entre 2018 e 2019, quando consolidou o seu protagonismo com políticas anti-refugiados, recusando sucessivamente o desembarque de navios com centenas de requerentes de asilo a bordo, ao mesmo tempo que eram detidos e acusados em Itália os voluntários de organizações não-governamentais que se ocupam de resgates. Actualmente, está a ser julgado por acusações de sequestro pela sua decisão de impedir o desembarque de 147 migrantes resgatados no Mediterrâneo pela ONG espanhola Open Arms, em Agosto de 2019.

De regresso ao Governo de direita e extrema-direita formado no ano passado, Salvini viu Meloni recusar-lhe o desejado regresso ao Ministério do Interior, tendo de se contentar com a pasta das Infra-estruturas e Transportes, para além de ser vice-primeiro-ministro. Mas as suas posições em relação aos refugiados são partilhadas pelos sócios de coligação – em Abril, quando mais de 4000 pessoas desembarcaram na Sicília em quatro dias, o Governo declarou o estado de emergência em todo o país, uma medida que permite aligeirar o processo de acolhimento e distribuição dos requerentes de asilo por diferentes regiões italianas, mas também acelerar o repatriamento daqueles que as autoridades considerarem que não têm direito a pedir asilo.

Tendo essencialmente um peso simbólico, a condenação da Liga, que terá de pagar uma indemnização de 5000 euros aos queixosos, acarreta também “um risco sério”, antecipa, no Avvenire, o veterano jornalista Nello Scavo: como a decisão do Supremo faz jurisprudência, a Liga e Salvini poderão “enfrentar dezenas de acções judiciais e uma montanha de indemnizações”, tantas como as intervenções públicas em que líderes do partido usaram termos como “clandestinos” e “ilegais” para se referirem aos requentes de asilo.

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