A mulher imunda e outras histórias
Sempre adorei presenciar mal-entendidos, e sempre foi o tipo de histórias que me deu mais vontade de rir. Lembro-me de várias que aconteceram na minha família.
Uma vez, quando tinha 15 anos, no Carnaval, à entrada da escola, um rapaz que já devia ter 18 anos e que andava com uma arma de brincar, com balas de borracha, disparou contra mim e acertou-me na perna. Senti uma dor considerável e até cheguei a tropeçar e a cair no chão com o susto e com o impacto.
Quando cheguei a casa, contei o que tinha acontecido à Gracinda, a empregada que trabalhava connosco nessa altura. Mostrei-lhe a pequena nódoa negra, do tamanho de um amendoim, que tinha na barriga da perna, descrevi o rapaz e a arma, que pretendia imitar uma caçadeira, mas de plástico, “do estilo das que usam por vezes na polícia para treinar!”, e manifestei a minha irritação com o rapaz, por ele ser mais velho, por não me conhecer, por ter fugido logo a seguir, e porque podia ter sido perigoso se me tivesse acertado no olho, por exemplo. A Gracinda não disse muito, mas ouviu-me e concordou comigo. Depois esqueci o assunto, lanchei e fui com uma amiga ao cinema.
Passadas umas horas, a minha mãe chegou a casa e foi sentar-se ao computador, na sala. Daí a pouco, a Gracinda apareceu à porta, circunspecta, e anunciou, devagar e em voz baixa: “Eu não a quero assustar, mas a Madalena levou um tiro.”
Desta parte chegou-me apenas o relato da minha mãe, que descreve que nesse momento ficou com a visão turva e se sentiu prestes a desmaiar. Começou instantaneamente a tremer e a chorar. A Gracinda aproximou-se e continuou a história, no seu tom grave: “Foi à porta da escola. Apareceu um homem, com uma caçadeira, daquelas com as balas que eles usam na polícia, sabe? Deu-lhe um tiro. Fugiu logo a seguir. Ela assim como que leva com o tiro, assim é projectada. Depois caiu no chão. E agora está com um hematoma.” A minha mãe, aos prantos, desesperada, perguntou onde estava eu, ao que a Gracinda respondeu: “Está no cinema.”
Não me esqueço desta história, não só porque me lembro de pegar no telemóvel, depois do filme, e de ver centenas de chamadas não atendidas; como porque sempre me fascinou o assunto dos mal-entendidos, dos equívocos. Sempre adorei presenciar mal-entendidos, e sempre foi o tipo de histórias que me deu mais vontade de rir. Lembro-me de várias que aconteceram na minha família.
No Norte, a minha avó tinha uma vizinha que a descrevia com o máximo respeito. “A Dona Paula é uma mulher imunda.” Ela queria dizer que era uma mulher fantástica, do outro mundo. Desde então, usamos o termo imunda, em família, com esse sentido.
Outra vez, uma senhora, com a intenção de elogiar a minha mãe, disse-lhe: “Você parece muito mais nova. Se não fosse pela cara, ninguém lhe dava a idade que tem.”
O meu tio estava a ler um livro chamado A Amante Dinamarquesa, nas férias, e a dado momento apareceu no jardim onde estávamos todos, e perguntou à minha tia, sua mulher, para nosso espanto: “Viste a Amante Dinamarquesa? Não a encontro em lado nenhum.”
Quando eu era pequena, dormi em casa de uma amiga da minha mãe, cujo filho era mais velho e se chamava João. Ela disse-me: “Amanhã vais para a escola com o João a guiar.” Eu não consegui conter a excitação, porque na altura adorava os livros do Bando dos 4: “Com o João Aguiar? Não acredito! É o meu escritor preferido!”
Não sei porque me divertem tanto os pequenos mal-entendidos. Quando testemunho um que esteja a acontecer entre duas pessoas, tenho um prazer secreto em observar em silêncio. Adoro quando percebo o que está a acontecer, o que cada lado está a entender, e sinto uma satisfação em não desfazer o equívoco, em não intervir logo para ajudar a solucionar, em deixar que o desentendimento se prolongue, pela diversão que me provoca.
Se for muito trágico, não é bom deixar o assunto correr, é claro. Mas a verdade é que quanto mais trágica, melhor a história. Apesar do transtorno que causou aos meus pais, nunca me vou esquecer do dia em que eles e a polícia estavam à minha espera à porta do cinema.