Órfãos ucranianos saboreiam a liberdade depois de escaparem à ocupação russa

Ilona e o irmão Maksym conseguiram escapar com a ajuda da associação de apoio humanitário Save Ukraine. A Rússia tem sido acusada de deportar crianças ucranianas para o território russo.

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Quanto tiverem passaportes ucranianos, Ilona e o irmão serão entregues à ex-mulher do seu pai, que está refugiada na Eslováquia Reuters/STRINGER

Lá estava ela, num terraço que ficava da parte de trás de um café em Kiev. Uma mesa de pingue-pongue.

Depois de quase um ano e meio escondida sob a ocupação russa, seguida de uma fuga ousada no mês passado, Ilona Pavliuk, de 16 anos, mal podia acreditar que estava tudo bem e que podia simplesmente parar e jogar.

"As pessoas são muito boas aqui. Elas vão ensinar-te [a jogar] mesmo que não sejas bom nisso. Podem até jogar contigo", disse. "Durante a ocupação, não havia pingue-pongue, as crianças nem jogavam futebol nos estádios. Há um estádio em Nova Kakhovka, no qual já ninguém joga", acrescentou.

O pai de Ilona, que estava doente, manteve-a escondida dentro de casa, juntamente com o seu irmão Maksym, de 15 anos, desde que os russos chegaram à aldeia de Pishchane, que se situa na margem sul do rio Dnipro. Ou seja, desde o início da invasão russa, que começou no ano passado.

"Eu não podia ir a lado nenhum, porque o meu pai estava preocupado. Ele disse que os russos me podiam violar. Ou me matar: existiram alguns casos assim. Ele nem me deixava ir ao parque que ficava a 100 metros da nossa casa! Então, eu não saí, fiquei em casa", contou Ilona num hostel em Kiev, enquanto puxa distraidamente Valera, um pinguim de brincar.

"Eu não estava a estudar, não terminei a escola. Não tenho qualquer documento comigo. Então, acho que sou considerada um boneco", disse.

No mês passado, o seu pai morreu de sida, a mesma doença que matou a mãe dez anos antes, deixando Ilona e o irmão órfãos.

"Eu sabia que tinha de sair, porque [os russos] poderiam levar-me para a Rússia, dar-me um passaporte russo e enviar-me para um orfanato", disse Ilona. "Um ou dois dias depois de ter saído, [os russos] foram a minha casa e eu já não estava lá. E se eu tivesse ficado?", pergunta.

O Presidente Vladimir Putin afirma ter anexado partes da Ucrânia ocupada pela Rússia. Moscovo diz que reuniu centenas de milhares de órfãos e crianças vulneráveis nessas regiões, levando-as posteriormente para a Rússia, alegando que tais acções visavam a segurança dessas crianças.

A Ucrânia diz que estas acções equivalem a uma deportação forçada para apagar a identidade ucraniana de uma geração de crianças, um crime contra a humanidade pelo qual Putin já foi indiciado pelo Tribunal Penal Internacional de Haia.

Ilona e Maksym conseguiram escapar com a ajuda da associação de apoio humanitário Save Ukraine, que mantém uma rede clandestina dentro das áreas ucranianas ocupadas pela Rússia e que ajuda as crianças a fugir. A associação diz que resgatou 200 crianças até ao momento.

As crianças cujos pais morreram são os casos mais urgentes, porque as autoridades instaladas pela Rússia tentarão rapidamente impor a tutela legal sobre essas crianças, disse o fundador da Save Ukraine, Mykola Kuleba.

"Todas as crianças que ficam sem pais são transportadas pelos russos através do seu território", disse Kuleba. "Eles designam um tutor ou colocam a criança numa família adoptiva. Depois disso, nenhum acordo funciona e é muito difícil recuperar uma criança. É por isso que é crucial trazer as crianças de volta o mais rápido possível, antes que esse tutor apareça."

A Save Ukraine agiu rapidamente no caso de Maksym e Ilona. Poucos dias antes da morte do seu pai, os voluntários, que actuam dentro do território controlado pela Rússia, ajudaram as crianças a fugir: primeiro, para a Rússia, depois para a Bielorrússia, depois para a fronteira e, finalmente, para casa, na Ucrânia. Os detalhes da viagem não foram revelados e são mantidos em sigilo para proteger os activistas que ajudaram as crianças ao longo deste percurso.

Ilona e Maksym estão agora a viver num hostel da associação, em Kiev. Assim que receberem os seus passaportes ucranianos, serão entregues à ex-mulher do seu pai, que está refugiada na Eslováquia.

Só quando viu o guarda de fronteira, que a deixou entrar na Ucrânia pela fronteira com a Bielorrússia, é que Ilona sentiu que estava finalmente segura. Uma nova lágrima caiu pelo seu rosto ao recordar a maneira como chorou quando chegou ao território ucraniano.

"Quando vi o primeiro soldado ucraniano, comecei a chorar. Ele perguntou: 'Porque estás a chorar?'. Respondi: "Porque estou na Ucrânia!'".

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