Portugal é mau exemplo no acesso à justiça nos casos de abuso sexual de crianças

Organizações internacionais colocam país entre os que têm tempo de prescrição “muito mau” como Sérvia, Arménia, Azerbaijão. Proposta do Governo impede que crime prescreva antes de vítima fazer 25 anos

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“Portugal é um dos poucos países na região [europeia] que não suspenderam a prescrição até à maioridade das crianças vítimas de abusos sexuais” Edgar Su/Reuters
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O tempo de prescrição em vigor em Portugal, para os crimes de abuso sexual de menores, é considerado “muito mau” por duas organizações internacionais que lutam contra estes crimes e que defendem que a prescrição deveria ser abolida, pelo menos, nos casos mais graves de abuso. Os defensores dos direitos das crianças colocam o país na lista dos que obtêm pior classificação (um F, numa lista em que A é o melhor) ao nível das prescrições, quando se olha para o contexto europeu.

As conclusões estão num relatório do Movimento Brave (Brave Movement, no original) e Child Global, dois grupos internacionais de advocacia que se dedicam à protecção das crianças vítimas de qualquer forma de abuso sexual. Em Justice Unleashed: Ending Limitations, Protecting Children (A Justiça Libertada: Acabar com limitações, proteger as crianças) é feita uma comparação entre diferentes países europeus no que se refere à prescrição dos crimes de abuso sexual de menores e defende-se que sejam feitas alterações à Convenção de Lanzarote, para a protecção das crianças contra a exploração sexual e os abusos sexuais.

Isto porque a convenção, no seu artigo 33.º, estipula que cada país “toma as necessárias medidas legislativas ou outras para garantir que o prazo de prescrição relativo à instauração de procedimentos por infracções penais […][relativas a abusos sexuais de menores] continue a correr por um prazo suficientemente amplo para permitir a instauração efectiva do procedimento após o momento em que a vítima tiver atingido a maioridade, e proporcional à gravidade da infracção penal em causa”.

Ora, para os autores do relatório, a linguagem utilizada neste artigo é “vaga e pouco clara”, o que faz com que haja uma enorme discrepância entre países “sem qualquer lógica”, transformando o efectivo acesso à justiça por parte das vítimas numa verdadeira “lotaria”, dependente do local onde residem.

Nesta matéria, as mais protegidas serão as crianças de países como o Reino Unido, a Irlanda, a Bélgica, a Dinamarca ou a Geórgia, todos classificados com um A (a melhor nota), já que não existe prescrição para a maioria dos crimes relacionados com o abuso sexual de menores. No extremo oposto, com a classificação F, estão Portugal, a Lituânia, a Finlândia, a Eslováquia, a Bulgária, a Sérvia, a Bósnia-Herzegovina, a Albânia, a Moldova, a Arménia e o Azerbaijão. Em todos estes países a prescrição, limitada, começa a contar a partir da data do cometimento do crime, dizem.

O relatório analisa o caso nacional, começando por dizer que “Portugal é um dos poucos países na região [europeia] que não suspenderam a prescrição até à maioridade das crianças vítimas de abusos sexuais”. O prazo de prescrição previsto na lei portuguesa para estes crimes é de 15 anos, nos casos mais graves, mas está também previsto que não é possível a prescrição acontecer antes de a vítima fazer 23 anos. Ou seja, se uma criança for violada aos seis anos, o crime prescreveria quando ela fizesse 21, mas a excepção inscrita no Código Penal alarga esse prazo por mais dois anos. Ainda assim, é claramente insuficiente para os autores do relatório, que defendem que prazos tão curtos para a prescrição destes crimes são “uma violação clara” dos direitos das vítimas.

O que as duas associações defendem é que a Convenção de Lanzarote seja alterada, passando a abolir a prescrição dos crimes de abusos sexuais sobre crianças. E os argumentos que apresentam para esta posição resumem-se facilmente: as vítimas precisam, muitas vezes, de décadas para falar pela primeira vez sobre os abusos; muitos abusadores são reincidentes e a impossibilidade de os levar a julgamento, por prescrição de crimes, impede a protecção de futuras vítimas e potencia o encobrimento; e a negação de justiça às vítimas contribui para exacerbar os traumas de que sofrem e que vão muito para além da infância e da adolescência.

Citando os dados de uma comissão australiana que fez um levantamento exaustivo sobre o abuso sexual no país, os autores do relatório referem que a média de idades para as vítimas se pronunciarem ronda os 44 anos, enquanto um outro estudo, feito nos Estados Unidos sobre abusos nos escoteiros, revelou que mais de 50% das vítimas só fizeram os primeiros relatos depois dos 50 anos. E tudo isto, defendem, deve ser um alerta para impedir que os crimes prescrevam antes de as vítimas atingirem estas idades.

Em Portugal, o relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja concluiu que a idade média das vítimas ouvidas rondava os 52 anos e que 43% delas admitiram ter falado pela primeira vez dos abusos precisamente à comissão. Ainda assim, a proposta que os membros deste grupo fizeram em termos de prescrição foi bastante mais modesta do que o que é agora pedido pelas associações internacionais: pediram que a idade mínima das vítimas para a prescrição fosse os 30 anos. Ou seja, nenhum crime grave de abuso sexual prescreveria antes de a vítima atingir essa idade.

25 anos como limite para apresentar queixa

Nos últimos anos, Portugal tem discutido a alteração aos prazos de prescrição, mas a proposta que está em cima da mesa fica muito aquém do que é defendido no actual relatório ou de projectos de lei anteriores que chegaram a receber aprovação.

Neste momento, o que foi aprovado na generalidade foi uma proposta de lei do Governo para que os crimes de abuso sexual de menores e de mutilação genital feminina não possam prescrever antes de a vítima fazer 25 anos, em vez dos 23 ainda em vigor. Além disso, apesar de se manter, na generalidade, o prazo de prescrição de 15 anos para os crimes mais graves, este só começa a contar quando a vítima atingir a maioridade. Ou seja, na prática, as vítimas podem apresentar queixa na expectativa de verem o perpetrador condenado, até aos 33 anos.

Esta proposta surge depois de o Parlamento ter aprovado em Março projectos de lei da Iniciativa Liberal, do Bloco de Esquerda e do PAN que previam que a prescrição não se efectivasse antes de as vítimas fazerem 40 (IL) ou 30 anos (BE e PAN). E em 2021, também o PAN e a deputada não inscrita Cristina Rodrigues tinham apresentado projectos de lei, que foram aprovados, mas caducaram com a dissolução do Parlamento. O do PAN previa que o crime não prescrevesse antes de as vítimas fazerem 40 anos e o da deputada Cristina Rodrigues permitia que as vítimas apresentassem queixa até aos 50 anos.

No relatório agora apresentado, os autores dizem que há alternativas, caso os países não queiram abolir de todo os prazos de prescrição, dando exemplos já em prática noutros países. Em França, se o perpetrador cometer um novo crime, o prazo de prescrição do crime inicial é interrompido; e na Letónia, Áustria e Lituânia, se houver um novo crime, a prescrição do crime inicial começa a contar a partir da data do novo crime. “As duas medidas permitem a acusação de um abusador em série por todos os seus crimes”, dizem os autores do documento.

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