A sombra do futuro

Um amigo pronunciou-se um dia sobre uma hipotética invasão do México pelos EUA. De nada valeria, dizia ele, aos mexicanos qualquer tipo de resistência. A única resistência possível seria o tempo.

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Não resisto a trazer aqui a fantástica analogia ibérica. Imaginemos Portugal maior do que Espanha, mais poderoso e, por conseguinte, dotado de maior capacidade militar. Socorramo-nos ainda da imaginação, idealizando uma vasta comunidade de portugueses residentes na Extremadura espanhola. Por fim, criemos a suposição de que, não importa agora os motivos, a comunidade lusitana seria fustigada, ao longo de alguns anos, pelo exército espanhol e, em especial, por milícias ultranacionalistas de Espanha, sofisticadamente armadas. Que reacção teria o povo português perante o massacre dos seus compatriotas? Consternação? Indignação? Impotência? Raiva? Suponhamos, além disso, que todos os canais diplomáticos haviam sido esgotados e que os malvados dos espanhóis (povo que, não fora isto pecar contra mim, tenho na mais elevada conta) persistiam na afronta. Consideraríamos, alguma vez, invadir Espanha, troando euforicamente as palavras mágicas “dever, honra, pátria”?

Para nós, a ideia do vestuário moderno dos novos conflitos, que estabelece metaforicamente uma equivalência entre o passado e o presente, é um reconhecimento indirecto da sua extrema separação. Contudo, o passado não está lá atrás; ele é, antes, a aurora do futuro, como dizia Pascoaes. Para concluir a ideia acima: apenas um poder superior restauraria a ordem que as nossas almas embotadas jamais seriam capazes de manter. A longa linha cinzenta da guerra – a capitulação do Japão, escrita nos destroços de Hiroshima, a derrota da Wehrmacht, desbaratada pelo Exército Vermelho, o fracasso morte-americano no Vietname – é um processo de ajustamento histórico. Isto não significa que os vencedores fossem melhores do que os vencidos, mas demonstra de forma convincente que o mundo é uma constante perpétua de caos e ordem, ou vice-versa.

Quando, depois da invasão da Noruega pelo exército alemão em 1940, Knut Hamsun, que admirava mais os arados do que as espadas, achou preferível, “por mais humana, por menos custosa de sacrifícios sangrentos e improfícuos, a solução da rendição e submissão, possivelmente temporária, ao invasor” e “deu expresso apoio ao governo de Quisling”, um governo fantoche, a sua infausta atitude “valeu-lhe nada menos que o qualificativo de traidor e ateou contra ele a ira da maioria dos seus compatriotas logo que liberta a Noruega” (citado de César de Frias).

O reverso da obscuridade geral do nosso tempo é a fantasia. Um amigo chegado pronunciou-se um dia sobre uma hipotética, mas inverosímil, invasão do México pelos Estados Unidos da América. De nada valeria, dizia ele, aos mexicanos qualquer tipo de resistência. A única resistência possível seria o tempo, resumiu.

Não me admira, pois, que pessoas assim, tal como eu, percorram uma paisagem social implacável e experimentem um profundo mal-estar perante a organização social e, de um modo particular, pela fórmula linear do pensamento actual, que parece desencantar heróis onde eles não existem e prefere, à custa das máscaras da democracia, desprezar a polifonia das ideias, em favor da estratégica retórica beligerante de Vílnius, lugar onde se projecta a nova sombra do futuro.

No caso espanhol, seria forçosamente apelidado de impudente invasor; no caso norueguês, de traidor repugnante. Inicialmente, interpretei esta dualidade como recusa do obscurantismo. Depois, passei a vê-la como respeitável tentativa de coerência. Julgo que, em qualquer dos casos, a maioria – vós que o ledes – trucidar-me-ia com os vitupérios mais refinados. Daí a tranquilidade em ser somente aceite como filho dos céus e da terra.

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