A guerra que ninguém ganhou e que ninguém consegue terminar

Com a capitulação japonesa em Agosto de 1945, as potências vitoriosas dividiram o território coreano de forma arbitrária – para Norte do paralelo 38.º situava-se a zona administrada pela União Soviética; para Sul, mandavam os EUA

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Soldados norte-americanos na guerra da Coreia Arquivo da Secretaria de Estado, Washington
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Refugiada coreana transportando o irmão Arquivos Nacionais dos EUA

De um lado, um grupo de mulheres, algumas grávidas, outras com crianças pelo colo, encaram os seus agressores – militares com uma aparência mecanizada, empunhando engenhos que são amálgamas de armas de várias épocas, desde espadas a metralhadoras. Pablo Picasso transformou os rostos das vítimas que aguardam a execução em máscaras que lembram o teatro grego. É o cinzento que domina, tal como em Guernica (1937) também sobre a guerra. Picasso pintava Massacre na Coreia (1951) quase em cima do acontecimento. A obra retrata um dos episódios que melhor simboliza a carnificina que marcou o primeiro grande conflito após a II Guerra Mundial e que, em termos técnicos, persiste até hoje.

Na pintura, Picasso reflectia sobre o Massacre de Sinchon, logo nas primeiras semanas da Guerra da Coreia (1950-53), e que ainda hoje é objecto de debate. Testemunhas e familiares das vítimas dizem que um grupo de soldados americanos executou centenas de civis que se escondiam debaixo de uma ponte ferroviária perto de uma aldeia 160 quilómetros a sudeste de Seul. Os Governos dos EUA e da Coreia do Sul negaram sempre qualquer responsabilidade pelo ataque e rejeitaram os pedidos de indemnização dos familiares das vítimas e nunca foi realizada qualquer investigação oficial. Em 1999, a Associated Press entrou em contacto com uma centena de veteranos de guerra norte-americanos cujos relatos dão alguma veracidade à versão das vítimas.

Também nos EUA, a Guerra da Coreia é olhada de forma amarga. Muitos chamam-na de “guerra esquecida”, pelo pouco relevo que lhe é dada na historiografia oficial. O seu desfecho, do ponto de vista norte-americano, ficou a meio caminho entre a vitória épica (e sem espaço para ambiguidades morais) na II Guerra Mundial e a catástrofe do Vietname. Mas os seus efeitos talvez sejam os de maior duração.

Entre 1910 e 1945, a Península da Coreia permaneceu ocupada pelo Império Japonês, subjugada por um sistema colonial que é ainda visto como uma humilhação histórica. Com a capitulação japonesa em Agosto de 1945, as potências vitoriosas dividiram o território coreano de forma arbitrária – para Norte do paralelo 38.º situava-se a zona administrada pela União Soviética; para Sul, mandavam os EUA. As rivalidades entre os dois blocos que já se delineavam impediram que se chegasse a um acordo para a unificação da península e a divisão consolidou-se com a emergência de dois regimes, em 1948: a Norte, Kim Il-sung fundou a República Popular Democrática da Coreia, com apoio de Moscovo; a Sul, Syngman Rhee passou a liderar a República da Coreia, apoiada por Washington.

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Os dois novos Estados envolveram-se em vários pequenos conflitos ao longo do paralelo 38.º, mas um deles acabou por degenerar numa invasão do Sul pelas forças norte-coreanas – Kim tinha obtido previamente o beneplácito de Estaline e a promessa de apoio directo chinês. O avanço contínuo das forças norte-coreanas, que em poucos dias tinham já tomado Seul, parecia tornar inevitável uma unificação da península à força e o surgimento de um novo Estado asiático sob a égide de Moscovo, pouco tempo depois da vitória de Mao na Guerra Civil chinesa. O Presidente dos EUA, Harry Truman, mobilizou de imediato as forças militares na região e, pela primeira vez desde a sua criação, procurou nas Nações Unidas um mandato internacional para uma intervenção militar.

Guerra Fria no terreno

Sem o previsível veto da União Soviética – que se tinha retirado do Conselho de Segurança meses antes em protesto contra a ocupação do lugar de membro permanente da China pelo regime nacionalista em Taiwan –, os EUA conseguiram obter luz-verde para liderar uma força militar internacional para intervir na guerra coreana. Mais de vinte países contribuíram com militares ou apoio logístico, mas o esforço de guerra ficou quase totalmente por conta dos EUA.

Com o apoio das forças internacionais, o Exército sul-coreano conseguiu conter os avanços rivais e, no final do Verão, a estratégia dos aliados de Seul passou da neutralização da ameaça para o objectivo de reunificar a península. Em poucos dias, as forças norte-americanas estavam a escassos quilómetros da fronteira com a China no rio Yalu. O recém-instalado regime comunista em Pequim viu-se então obrigado a intervir. Pela primeira vez, os dois blocos que iriam dominar as décadas seguintes enfrentavam-se directamente no campo de batalha.

O primeiro ano de guerra foi marcado por ofensivas de larga escala e recuos de escala semelhante por ambos os lados até a linha da frente ficar cristalizada ao longo do paralelo 38.º. Em meados de 1951, os dois lados do conflito iniciaram um período de impasse, sem que ninguém conseguisse uma vantagem que permitisse ditar os termos de um acordo para terminar a guerra. Entretanto, o mundo voltava a assistir a nova barbárie, com mais de quatro milhões de mortos, sete milhões de refugiados e dois países destruídos.

Ressentimento sem fim

Com a eleição de um novo Presidente norte-americano, Dwight Eisenhower, no final de 1952, a prioridade passou a ser acabar com as hostilidades. A 27 de Julho de 1953, é assinado um armistício entre os comandantes militares da Coreia do Norte, da China e da coligação internacional da ONU, que instaura um regime de tréguas e estabelece uma área tampão de quatro quilómetros de largura entre as duas Coreias, conhecida como zona desmilitarizada. O texto do documento diz claramente que o objectivo do armistício é “assegurar a cessação total das hostilidades e de todos os actos das forças armadas na Coreia até que um acordo pacífico final seja alcançado”. Mais de seis décadas depois, esse tratado de paz está por assinar.

A guerra que ninguém ganhou deixou um rasto de destruição e um ressentimento que parece não ter fim. O lendário general Douglas MacArthur, que foi comandante supremo das forças da coligação da ONU, descreveu o horror daquele conflito durante um depoimento no Congresso em 1951: “Penso que vi tanto sangue e desastre como qualquer homem vivo, e o meu estômago ficou revoltado da última vez que lá estive.”

Para os norte-coreanos, a intervenção dos EUA não só pôs fim às aspirações de reunificação da Coreia, como é sinónimo de uma destruição impiedosa. Em três anos, a aviação norte-americana lançou 635 mil toneladas de explosivos sobre cidades da Coreia do Norte – mais do que durante as batalhas no Pacífico durante a II Guerra Mundial. Para o regime de Pyongyang, os bombardeamentos “tornaram-se numa ferramenta política para justificar um estado de emergência permanente”, explicou à CNN o professor da Universidade Nacional de Pusan, Robert Kelly.

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