Plástico: Açores e Madeira no mapa mundial de risco para as aves marinhas

Mar Mediterrâneo, mar Negro e algumas regiões dos oceanos são os locais onde há maior risco de aves marinhas ingerirem plásticos, mostra estudo coordenado por investigadora portuguesa.

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O plástico que se encontra nos oceanos é em grande parte proveniente das lixeiras existentes em terra Bethany Clark
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As aves marinhas são um dos grupos de animais directamente impactados pelo plástico nos mares e nos oceanos, mas a verdadeira dimensão do risco a que estes animais estão sujeitos ainda é pouco conhecida. Agora, um estudo analisou as migrações de 77 espécies de pardelas e painhos, aves marinhas particularmente susceptíveis ao plástico, e identificou as geografias de maior risco. O mar Mediterrâneo aparece em primeiro lugar, mas os Açores e a Madeira também surgem como regiões de perigo.

O trabalho, que conta com mais de 200 autores de todo o mundo – 18 deles portugueses –,​ foi publicado nesta terça-feira na revista Nature Communications.

“Surpreendeu-me que a Madeira e os Açores sejam áreas de risco moderado para o plástico marinho”, disse ao PÚBLICO Maria Dias, bióloga e professora da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, especialista em ecologia das aves migratórias, e que coordenou o projecto. O oceano à volta daqueles arquipélagos “tem algum plástico, não tanto como o mar Mediterrâneo, mas tem muitas aves”, acrescentou a investigadora, justificando a razão de Portugal ter surgido referido no artigo. “Portugal é um dos países mais importantes do oceano Atlântico para as aves. E agora surge [no artigo] como um dos sítios que deverá ser estudado”, adiantou.

O trabalho começou em 2019, quando Maria Dias coordenava a equipa científica marinha da BirdLife International, uma parceria internacional com sede em Cambridge, no Reino Unido, composta por organizações não governamentais de 115 países (em Portugal, a SPEA – Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves), dedicada ao estudo e à conservação das aves.

“Este estudo vem na sequência de um trabalho que fiz em que se avaliou os impactos e as ameaças de todas as aves marinhas do mundo”, disse a bióloga. Nesse trabalho, “os plásticos nem apareciam como algo muito impactante para as aves marinhas”, acrescentou.

Por isso, o novo projecto lançado pela bióloga tinha como objectivo produzir um mapa com as regiões que põem mais em risco as aves marinhas a nível de ingestão de plásticos. Isso dependerá não só das regiões dos oceanos com maior concentração de plástico, mas também das geografias usadas pelo maior número de espécies marinhas. Por outro lado, o trabalho tinha o objectivo de identificar as lacunas de conhecimento sobre o tema e, desse modo, as prioridades de investigação para as colmatar.

A freira-de-testa-azul (Pterodroma cookii) é uma das aves mais expostas ao plástico marinho Paul Donald
Um pombalete-do-norte (Fulmarus glacialis) Bethany Clark
Uma pardela-de-barrete (Ardenna gravis) Bethany Clark
Um calca-mar (Pelagodroma marina) Paul Donald
Um pintado (Daption capense) Bethany Clark
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A freira-de-testa-azul (Pterodroma cookii) é uma das aves mais expostas ao plástico marinho Paul Donald

O perigo do plástico

O plástico que se encontra nos oceanos é em grande parte proveniente das lixeiras existentes em terra. Outra parte vem das embarcações pesqueiras que deitam lixo directamente para a água, apesar de já haver legislação que proíbe esse hábito. O problema dos plásticos não é apenas o facto de ser artificial, muito difícil de degradar e facilmente confundido com o alimento pelos animais. Muitas vezes, os plásticos contêm ainda substâncias tóxicas que se espalham pelos oceanos e podem ser assimiladas pelos animais quando os ingerem.

Sabe-se que, ao ser ingerido pelas aves, o plástico pode provocar ferimentos, causar inanição e envenenamento. Um estudo recente publicado no Journal of Hazardous Material descrevia uma patologia nas aves provocada pelo plástico, a plasticose. Na presença deste material, a mucosa do estômago das aves alterava-se, desenvolvendo-se um tecido fibroso como se fosse uma cicatriz. Já objectos naturais que não são digeríveis, como pedras-pomes, não provocavam aquele tipo de efeitos nas aves.

As pardelas e os painhos, analisados agora no novo trabalho, são aves marinhas particularmente vulneráveis ao plástico. “Elas comem muito à superfície do mar. Muitas vezes comem peixes com plástico e confundem as presas com o plástico”, descreveu Maria Dias. Além disso, estas espécies não regurgitam facilmente o que têm no estômago, podendo ficar com os objectos durante muito tempo dentro de si.

Aquelas aves “têm um papel muito importante nos ambientes marinhos, alimentam-se de muitos peixes”, considerou ainda a bióloga, acrescentando que muitas daquelas espécies estão ameaçadas de extinção. Por dependerem do mar para se alimentarem e da terra para nidificarem, estão sujeitas a várias ameaças: são susceptíveis à sobrepesca e à captura acidental pelos pescadores, no mar; e aos animais invasores, na terra; além de serem vulneráveis às alterações climáticas.

“Elas também vivem durante muito tempo e reproduzem-se lentamente, o que as torna uma população que recupera lentamente de um impacto provocado pela actividade humana”, adiantou ao PÚBLICO, por sua vez, Bethany Clark, primeira autora do estudo, actual coordenadora da equipa científica marinha da BirdLife International.

De qualquer maneira, as pardelas e os painhos “são bons indicadores da saúde do oceano”, de acordo com o novo artigo. “As aves alimentam-se no mar e depois retornam para terra onde o plástico que comeram pode ser registado. Isto é muito difícil de fazer para a maioria das espécies marinhas que percorrem grandes extensões”, explicou Bethany Clark. Esta é uma das boas razões para haver uma monitorização padronizada e regular da ingestão de plástico daquelas aves marinhas, já que daria uma fotografia actualizada da situação nos oceanos.

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O fura-bucho-do-atlântico (Puffinus puffinus) tem algumas colónias nos Açores e na Madeira Bethany Clark

Trabalho de compilação

A investigação partiu de estudos feitos entre 1995 e 2020, geralmente dedicados a determinadas espécies ou a populações, em trabalhos de ecologia e comportamento que nada tinham que ver com o problema do plástico. Ao todo, utilizaram-se mais de 1,7 milhões de localizações rastreadas de 7137 adultos de 77 espécies de aves marinhas em 27 países e na Antárctida.

Por isso, houve um grande trabalho de compilação. Por um lado, agruparam-se as rotas daquelas 77 espécies num só mapa. Por outro, sobrepôs-se essa cartografia à da densidade dos plásticos nos oceanos. Ao contrário do que se possa pensar, os plásticos não se acumulam uniformemente. O mar Mediterrâneo e o mar Negro têm uma especial acumulação de plástico. Depois, os giros oceânicos levam o lixo a acumular-se em determinadas regiões marinhas. A mais famosa é a ilha de lixo do oceano Pacífico, que se estima ter 1,6 milhões de quilómetros quadrados, 17 vezes o tamanho de Portugal.

Ao sobrepor-se os dois mapas, a equipa identificou as regiões com maior risco. “Entre as zonas mais perigosas para as aves surgem assim o Mediterrâneo, o mar Negro, o Noroeste e Nordeste do Pacífico, o Atlântico Sul e o Sudoeste do Índico”, lê-se num comunicado do Centro para a Ecologia, a Evolução as Alterações Ambientais, onde Maria Dias trabalha. Depois, países como Portugal, Brasil, França, Argentina, Rússia, Austrália, China e Madagáscar apresentam um risco médio nas suas Zonas Exclusivas Económicas (ZEE) ao nível da exposição ao plástico.

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Mapa com as manchas onde há maior risco das aves marinhas serem expostas ao plástico Clark et al

Além disso, o alto-mar, que não está dentro da ZEE dos países, é usado por “75 das 77 espécies estudadas e é responsável por 25% do risco global de exposição a plástico”, lê-se no artigo. Este aspecto reforça uma das conclusões mais importantes do artigo. A maioria das espécies alimenta-se maioritariamente fora da ZEE do país onde nidifica. Por isso, estratégias de conservação que tenham como objectivo enfrentar o problema do plástico têm de ser feitas a nível internacional.

“As soluções podem incluir a redução do uso de plástico descartável, melhorar a reciclagem e a gestão de lixo, e melhorar o cumprimento das proibições existentes do descarte de qualquer tipo de plásticos das embarcações”, sugeriu Bethany Clark. “Os tratados regionais e globais do plástico e da biodiversidade em águas nacionais e no alto-mar são importantes.”

“Machadada final”

Por outro lado, o trabalho também revelou que 19 espécies estão especialmente sujeitas ao plástico marinho. Onze delas estão ameaçadas de extinção.

Um bom exemplo é a pardela-balear (Puffinus mauretanicus), que nidifica nas ilhas baleares, no mar Mediterrâneo, e está criticamente em risco de extinção. É “considerada a ave marinha mais ameaçada da Europa”, de acordo com a SPEA. Esta espécie vem passar o Inverno à costa portuguesa. No estudo, a pardela-balear ficou em segundo lugar ao nível do risco de exposição ao plástico.

“Estamos a falar de espécies que já estão fragilizadas e que sofrem muitos problemas”, explicou Maria Dias. Embora os fenómenos que levaram as espécies a uma situação de risco de extinção não estejam ligados ao problema do plástico, não se sabe que papel é que este problema poderá desempenhar no futuro daquelas espécies. Por isso, a equipa defende a necessidade de avaliar este perigo adicional. A freira-do-bugio (Pterodroma deserta), que vive apenas na ilha do Bugio, uma das três ilhas Desertas no arquipélago da Madeira, está numa situação vulnerável em termos de risco de extinção e é uma das quatro espécies prioritárias que devem ser objecto de estudo sobre a questão do plástico, refere o artigo.

“Já se verificou que mesmo as espécies com uma baixa exposição ao risco ingerem plástico. Isto mostra que os níveis de plástico no oceano são um problema para as aves marinhas em todo o mundo, mesmo nas áreas que não são consideradas de alta exposição”, sublinhou Bethany Clark, num comunicado da Universidade de Cambridge.

Há muitas questões a serem respondidas, como a relação entre a exposição ao plástico e a sua ingestão. É importante compreender se as espécies “ignoram ou não o plástico, qual é o impacto nas populações, se já começaram a sofrer a plasticose, se trazem o plástico para alimentar as crias e se as crias conseguem sobreviver”, enumerou Maria Dias. “Em muitas destas espécies, o impacto do plástico não é muito conhecido, e pode ser a machadada final. Pode contribuir para a extinção.”