Há uma Fábrica de Pandemias por trás de cada floresta destruída

Documentário de Marie-Monique Robin tem como guia a actriz Juliette Binoche e estreia-se este sábado no canal Odisseia. Fala de sete países onde a perda de biodiversidade ameaça a saúde global.

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A realizadora Marie-Monique Robin e a actriz Juliette Binoche entrevistaram cientistas de sete países no documentário “A Fábrica das Pandemias” Pierrot MEN
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A actriz francesa Juliette Binoche, que nos guia no documentário “A Fábrica das Pandemias” Pierrot MEN
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A realizadora Marie-Monique Robin com a actriz Juliette Binoche Pierrot MEN
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A actriz francesa Juliette Binoche guia-nos no documentário “A Fábrica das Pandemias” Pierrot MEN
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A realizadora Marie-Monique Robin e a actriz Juliette Binoche entrevistaram cientistas de sete países no documentário “A Fábrica das Pandemias” Pierrot MEN
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Realizadora e jornalista de investigação consagrada, a francesa Marie-Monique Robin pouco sabia sobre a chamada “saúde global” antes da pandemia da covid-19, mas cedo percebeu que a proliferação de vírus como Ébola, Zika, a febre de Lassa e SARS estava intimamente relacionada com um tema que já conhecia: a exploração sem limites dos solos.

Passou os dois anos seguintes a investigar sobre o assunto, publicando primeiro o livro La Fabrique des Pandémies (editora La Découverte), em Fevereiro de 2021, e depois o documentário homónimo, em Maio de 2022. O livro tornou-se um best-seller em França, traduzido em várias línguas. O filme A Fábrica das Pandemias já passou na televisão em 15 países, segundo a autora, que participa em exibições em sala e debates organizados por todo o mundo. Tendo como guia a actriz Juliette Binoche, que viaja por sete países onde a acção humana ameaça a biodiversidade, o documentário tem estreia marcada na televisão portuguesa este sábado, às 22h30, no canal Odisseia.

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Marie-Monique Robin, realizadora do documentário “A Fábrica das Pandemias com Juliette Binoche”

Em 2008, no documentário Le monde selon Monsanto (O mundo segundo a Monsanto), Marie-Monique Robin denunciou os contratos com que a multinacional tolhia a acção dos agricultores, assim como as consequências nefastas que a plantação das sementes geneticamente modificadas está a ter nos solos das Américas, de África e da Índia. Graças a este documentário e ao livro homónimo, traduzido em 15 línguas, o debate sobre os transgénicos e a agro-química manteve-se vivo.

Agora, é a vez de olhar para a acção da desflorestação e as práticas agrícolas de monocultura na perda de biodiversidade, criando um caldo perfeito para a proliferação de doenças infecciosas que passam dos animais para os humanos com cada vez maior facilidade. Ao longo do documentário, termos como “efeito de diluição” hóspedes não-competentes — “é preciso aprender a amar as espécies não-competentes”, ouve-se, a dada altura — ou o conceito de “One Health” (“uma só saúde”) tornam-se familiares, e até o stress dos morcegos passa a estar entre as preocupações que nos tocam individualmente.

Tudo, de facto, está interligado: a saúde dos humanos depende da saúde do ambiente e dos animais selvagens que nele vivem. E vice-versa. “Ainda nos falta compreender como a biodiversidade é, de facto, a pedra fundamental da saúde global”, afirma Marie-Monique Robin, que conversou com o Azul na contagem decrescente para a estreia de A Fábrica das Pandemias com Juliette Binoche no canal Odisseia.

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A realizadora Marie-Monique Robin e a actriz Juliette Binoche Pierrot MEN

Há décadas tem-se dedicado ao jornalismo de investigação. Várias das suas investigações, incluindo documentários, abordam questões da agricultura e da alimentação. Como chegou a este tema das doenças infecciosas?
No final de Janeiro de 2020, ainda antes do início do confinamento, li um artigo do The New York Times que tinha como título Nós criámos a epidemia do coronavírus, que citava vários cientistas. Comecei logo a investigar e passei dois anos a trabalhar, primeiro no livro, depois no filme. Eram coisas muito novas para mim. Vivemos um período muito incerto com a covid-19, não percebíamos de onde tinha vindo. Todos aqueles cientistas conseguiam dar algum sentido àquilo que estávamos a viver, mostrando os mecanismos. Isso, para mim, foi muito poderoso.

É muito diferente fazer documentários sobre esses temas hoje em dia? Por um lado, as pessoas estão mais atentas e informadas, mas o poder dos grandes grupos empresariais parece também cada vez maior...
É verdade. Se comparar com 25 anos atrás, os cidadãos em geral estão mais cientes do que se está a passar com as alterações climáticas, perda de biodiversidade, poluição. Por outro lado, confesso que os políticos e os grupos empresariais parecem não perceber o que está a acontecer e continuam no mesmo caminho de sempre. É na realidade isto o que mais me preocupa, porque nesta minha última viagem à volta do mundo para a produção de A Fábrica de Pandemias percebi como as coisas estão a acelerar e que estamos mesmo a atingir pontos de viragem nas alterações climáticas, na perda de biodiversidade… e também na saúde global dos ecossistemas, animais, humanos. Vemos hoje todo o tipo de doenças, não apenas doenças infecciosas como a covid-19, mas também doenças crónicas. E é muito difícil convencer os políticos a agir rapidamente, porque é isso de que realmente precisamos.

Eu nunca tinha trabalhado antes neste tópico da biodiversidade em particular. Quer dizer, quando escrevi sobre pesticidas, é de biodiversidade que estamos a falar. Mas ainda nos falta compreender como a biodiversidade é, de facto, a pedra fundamental da saúde global. Se continuarmos a destruir biodiversidade, são muito más notícias para nós, humanos, para os animais e para os ecossistemas, porque está tudo interligado. Foi para mim algo realmente novo, e de certa forma isso é bom, porque conseguimos perceber o que se passa, desde as causas aos mecanismos, e o trabalho desenvolvido por cientistas pareceu-me impressionante.

Participei em vários debates depois de exibições do filme nos EUA, em França, recentemente no Brasil e na Colômbia, e as pessoas agradeciam muito por descobrirem, por exemplo, este mecanismo do efeito de diluição, que é muito bonito. Compreende-se, de facto, como é que podemos proteger a biodiversidade. Nós dependemos verdadeiramente dela e fazemos parte dela. É bom saber que há causas por detrás destas novas doenças, e, se conhecermos as causas, podemos agir sobre elas.

Como acabou a trabalhar com a Juliette Binoche?
Na realidade, não foi planeado. Em Agosto de 2020 ela ligou-me a dizer que gostava muito dos meus documentários e dos livros e que gostaria que eu me juntasse ao festival de cinema documental a que ela estava a presidir, no Sul de França. Quando nos encontrámos lá, perguntou-me o que é que eu andava a fazer. Ela tinha visto Le monde selon Monsanto e ficou muito impressionada, mas disse-me que não percebia nada sobre ciência e gostava de aprender mais para ser capaz de passar a mensagem. Perguntou-me se podia vir comigo para o filme.

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A actriz francesa Juliette Binoche guia-nos no documentário “A Fábrica das Pandemias” Pierrot MEN

Eu e o meu produtor achámos que o facto de ela não compreender nada sobre ciência podia ser muito útil. Tenho trabalhado com cientistas nos meus documentários, e o problema é sempre descobrir uma forma de tocar o público mais alargado, e não apenas especialistas. Não vale a pena estar a fazer filmes para especialistas. E o facto de ela reconhecer que não sabia nada poderia ser uma ponte entre o público e os cientistas.

Que contributos trouxe para o projecto?
Ela contribuiu muito, leu o meu livro três vezes. Eu escrevi as perguntas do guião antes da viagem e ela nalguns casos dizia-me que não compreendia algumas das questões. Pedi-lhe que não saltasse questões do guião, mas reforcei que, se ela tivesse alguma pergunta que gostasse de fazer, podia estar à vontade para isso.

Há uma parte no filme, quando estamos numa floresta em Nova Iorque, em que ela pergunta se as carraças saltam. Isso não era uma pergunta do guião, mas funcionou muito bem. As pessoas dizem-me que conseguem identificar-se com ela porque estamos a acompanhá-la. Afinal de contas, no filme estamos a ouvir apenas cientistas a dizer coisas que podem ser muito difíceis de compreender, mas isso não acontece, porque ela nos acompanha.

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A actriz francesa Juliette Binoche guia-nos no documentário “A Fábrica das Pandemias” Benoit Ricard

Há uma outra questão em que ela ajudou muito. Eu queria trazer argumentos racionais sobre por que é que temos que proteger a biodiversidade, e seriam os cientistas a dar as chaves, digamos assim, para compreendermos por que é que nos está a afectar. Mas também queria que as pessoas se sentissem tocadas emocionalmente. E a Juliette é muito sensível.

Lembro-me de quando estávamos no Iucatão, no México, havia uma passagem por um mangal que é extraordinária, estávamos todos emocionados com a beleza daquela travessia, e ela começou a chorar. E sei que há pessoas que vão chorar com ela, ao ver as imagens daquele túnel de mangal. Ela traz essa sensibilidade. Estou muito contente por termos feito o filme juntas, ainda bem que ela me ligou. E não foi fácil para ela fazer o documentário, não havia o mesmo tipo de condições como quando está a fazer um filme, mas alinhou e foi uma experiência muito boa, sei que ficou muito orgulhosa do resultado.

Passa por vários países no documentário, mas não pela Europa. Porquê?
O nosso foco era explicar de onde vêm as novas doenças infecciosas, e a maioria delas está a vir das regiões tropicais. Queria mesmo mostrar estudos feitos por cientistas e explicar por que é que a maioria das doenças emergentes vem das áreas tropicais na Ásia, África ou América do Sul. É um hotspot de biodiversidade, com imensos animais, árvores e micróbios, que também são parte da biodiversidade. Eu quero que toda a gente consiga perceber este mecanismo.

Quais são os planos para projectos futuros?
Estou a preparar um segundo documentário que, no fundo, responde à questão sobre a Europa. No livro há um capítulo que era mais sobre o que acontece em Portugal, em França, qual é a ligação entre a perda de biodiversidade no mundo e na microbiota, a nossa capacidade de resistir a novas doenças e a doenças inflamatórias, lidando com o sistema imunitário. Estou a trabalhar nisto agora.

É muito interessante ver como as crianças que não são expostas à biodiversidade no início da vida — quando não convivem com o ambiente natural, expostas a micróbios ou sítios mais sujos, sem antibióticos — têm mais alergias, asma, doenças inflamatórias tais como alergias alimentares. Isto é importante porque este tipo de doenças crónicas são factores de co-morbidade para a covid-19. Neste documentário, filmei na Alemanha, nos Países Baixos, em França, nos EUA, para perceber como isto funciona.

Tem planos de passar por Portugal?
Eu tenho recebido convites, mas neste momento estou a tentar reduzir as viagens de avião. Já tenho que viajar tanto para os filmes, por isso estou a tentar reduzir a minha pegada ecológica no que for possível. Continuo disponível para dar conferências e entrevistas neste formato.

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