Da luta dos professores à tragédia dos migrantes no Mediterrâneo

Há que distinguir o trigo do joio e não confundir o gesto ofensivo e perverso de um bando de mercenários do ensino, com a justa luta dos professores que tem vindo a revelar gritantes injustiças.

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Abordarei duas situações, no meu artigo: a de 10 de Junho, com o primeiro-ministro, António Costa, cujas imagens televisivas chocaram qualquer pessoa de bem, e a da viagem de Ursula von der Leyen à Tunísia (11 de Junho), acompanhada por Giorgia Meloni (Itália) e Mark Rutte (Holanda), tendo em mente discutir a crise migratória com o Presidente tunisino, Kais Saied.

No que diz respeito ao Dia de Portugal, há que distinguir o trigo do joio e não confundir o gesto ofensivo e perverso de um bando de mercenários do ensino, com a justa luta dos professores que tem vindo a revelar gritantes arbitrariedades e injustiças, acentuadas ao longo dos anos, e que têm interferido negativamente na vida profissional e familiar dos docentes. O que se viu, e não pode negar-se, foi um acto de racismo, estreitamente associado à alarvice e ao sadismo que o referido comportamento implica pela sua própria natureza irracional. A dureza da imagem, que não identificamos como caricatura, num cartaz sem qualquer frase reivindicativa, foi agravada com a brutalidade de olhos furados por lápis. Que politicamente se queira minimizar ou silenciar o ocorrido, é atitude intolerável!

Compreendo que o primeiro-ministro, perante a tormentosa experiência de um séquito tão ultrajante, confundisse a luta dos professores com um grupelho, o que hasteava os ditos cartazes, que só por acaso estará no ensino, não deixando de ser preocupante porquanto o seu comportamento contraria o papel dos professores na formação da personalidade dos alunos, do básico ao secundário. Já não é aceitável, no entanto, que outros comentem o ocorrido, procurando demagogicamente desfigurar a justa luta dos professores.

Um grupelho não representa a classe e por isso muito desejaria que, mais a frio, o primeiro-ministro reconsiderasse que uma classe não pode ser atingida pelo comportamento racista e grosseiro de uma minoria na qual os outros professores não se revêem. E aproveito para chamar a atenção relativamente à facilidade e pouca exigência do sistema, no recrutamento de professores, e à falta de empenho numa aposta séria na sua formação, o que traduz um desleixo politicamente incompreensível e que urge solucionar. Há já demasiados anos que se mantém, independentemente de quem governa.

A segunda situação incide sobre a viagem acima descrita, tendo como alvo os migrantes que a partir da Tunísia tentam chegar à Europa, via Mediterrâneo, nomeadamente a Itália. Fogem, é sabido, da guerra, da fome, da perseguição ou do desemprego, na procura de melhores condições de vida, experiência a que a História dos países europeus não é alheia, incluindo Portugal. E o que conhecemos dos intervenientes nesta viagem? Ursula von der Leyen, em 2022, declarou que “a Europa está ao lado daqueles que precisam de protecção”; Giorgia Meloni, dificultando o trabalho de socorro a migrantes, concretizado por organizações humanitárias, defendeu recentemente o fim da “protecção especial para os requerentes de asilo”; Mark Rutte, em Janeiro de 2021, liderando o governo dos Países Baixos, foi forçado a confirmar, face ao escândalo provocado com os abonos de família, que “pessoas inocentes foram criminalizadas e viram as suas vidas arruinadas por culpa do governo”, sendo na sua maioria imigrantes; Kais Saied afirmou, em Fevereiro de 2023, a “necessidade de pôr rapidamente fim às hordas de migrantes clandestinos”, fonte de “violência, crimes e actos inaceitáveis”, relevando haver “um acordo criminoso desde o início do século para mudar a composição demográfica da Tunísia”, com “partidos que recebem grandes somas de dinheiro para instalar na Tunísia imigrantes da África subsariana.” A habitual estratégia do bode expiatório que incita à violência contra o outro, camuflando assim os problemas reais do país.

Fingindo ignorar as palavras xenófobas de Kais Saied, os prestigiados viajantes fingem acreditar na resolução do problema. Uma situação a lembrar livros policiais, em que a vítima procura socorro junto do assassino. Sabendo-se quão sedutor é o dinheiro, os casos diários de corrupção, aqui e no mundo, confirmam-no, nada melhor do que acenar a um país em difícil situação económica com uma assistência de 900 milhões € (a negociar), e a garantia de uma injecção imediata de 150 milhões. Não é a ajuda financeira à Tunísia que está em causa, o que nauseia é a ajuda financeira perspectivada como um sedutor presente que exigirá, mesmo à custa da violência, a contenção das vagas migratórias, ou seja, uma moeda de troca. Alguém ignora que os migrantes, amontoados em campos na Grécia, na Itália, na Turquia ou na Tunísia, são maltratados, roubados, humilhados e aí desesperam? É óbvio que a situação é de difícil resolução, mas quando se pune a vítima há que reflectir sobre a solução, tanto mais que já cansa o apregoar contínuo dos valores europeus.

Nauseia também a hipocrisia oficial perante o terror das imagens do naufrágio, acontecido a 14 de Junho, com um barco de pesca em que seguiam cerca de 700 migrantes, aglomerados no convés e no seu interior, que procuravam chegar a Itália, vindos da Líbia. Dificilmente se aceita como verídica a recusa de ajuda por parte de migrantes, sedentos, exaustos e desesperados por dias de viagem, sem quaisquer condições, como foi revelado pela “agência responsável pela vigilância das fronteiras europeias” – Frontex. A versão contraditória não tardou a surgir, através do jornal francês, Libération, que, citando Nawal Soufi, um voluntário de Alarm Phone – projecto existente desde 2014, constituído por “voluntários da Europa, Tunísia e Marrocos que se empenham no resgate marítimo de refugiados, fornecendo dados de GPS às autoridades –, referiu ter havido pedidos de socorro “desde a manhã de terça-feira” (13 de Junho).

A forma de actuar e de pensar de alguns dirigentes políticos, entre os quais aqueles a que acima me referi, lembrou-me o monólogo, que transcrevo, de uma personagem – Wilhelm Freytag – “alemão de boa e sólida família luterana”, da obra A Nave dos Loucos, de Katherine Anne Porter: “Parou a caminho do camarote para lançar uma vista de olhos ao poço escuro da terceira classe. A coberta estava coalhada de corpos humanos amontoados em confusão, […] sem nada entre os ossos e o piso duro. […]. Os restantes dormiam empilhados uns sobre os outros, como trapos sujos que tivessem sido lançados para um caixote do lixo. Ficou alguns instantes a contemplar o inviolável mistério da pobreza, que era como uma moléstia lenta e incurável. […] E, no entanto, pensou, afastando-se com uma ponta de piedade relutante, eles são necessários, têm o seu lugar no mundo. Que faríamos sem eles? E aí vão eles, recambiados de um lugar onde não os querem para um lugar onde não poderão ser bem recebidos, de trabalho duro e da fome para a falta de trabalho e a privação completa, da miséria para a miséria. Que espécie de criatura suportaria isto a não ser algum tipo de animal inferior?”

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