Educação – como o Governo aumentou a desigualdade social e regional

A degradação da escola pública é evidente, e falar dela não é denegrir e nem estigmatizar – é não desistir de lutar por algo que queremos e merecemos melhor.

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Abriu a época do “ataque ao ranking das escolas”, mas, efetivamente, o problema não é nem a elaboração dos rankings, nem o facto de haver exames finais: o verdadeiro problema está nos resultados e nas causas da manifesta deterioração das aprendizagens e da crescente, e inaceitável, assimetria da qualidade da educação pelo país.

É evidente que não se pode apenas comparar os números a cru, tentando comparar o que não é comparável, e aqui soma-se o grave problema de perda de comparabilidade dos exames devido à aplicação de critérios diferentes ao longo dos anos letivos. No entanto, é por demais evidente que a tendência de deterioração é transversal e que existem muitos dados elementares para trabalhar e enquadrar os rankings (por exemplo com elementos de equidade, enquadramento socioeconómicos e outros).

Na disciplina de Português, em 2022, cerca de 30% das escolas tiveram média negativa, quando em 2019 essa percentagem tinha sido de 6%. Em Matemática, que já estava com uns preocupantes 38% com média negativa, passamos para uns dramáticos 70%, em 2022. Se considerarmos Português e Matemática, em conjunto, em 2022, mais de metade das escolas tiveram uma média inferior a 50% nos exames de 9º ano. Isto é difícil de aceitar, e só não é assim tão difícil de compreender para quem está a acompanhar de perto o que se passa no terreno

Não venha o Governo falar-nos em celebrações de recuperação de aprendizagens, da melhor preparação de sempre ou do sucesso em indicadores de abandono escolar. Há limites para a desfaçatez, mas estes ainda são suplantados quando os governantes se mostram ofendidos sempre que a oposição (falo por experiência própria) os confronta com a dura realidade e, pasme-se, ripostam furiosamente, afirmando que estamos a denegrir a escola pública ou que não estamos a honrar o esforço dos professores. Mas será que alguém ainda cai nessa narrativa?

E desengane-se quem atribui a culpa destes resultados medíocres à existência de exames. O que não está bem é o próprio sistema de ensino. Luto, e continuarei a lutar, pela existência de exames finais, pois só eles podem dar-nos uma indicação fiável do estado da educação e da necessidade de intervenção.

Outro ponto a salientar, ainda sobre o tema das assimetrias, e que tem passado ao lado da discussão: entre as 50 escolas mais bem classificadas no ranking, 36 (72%) localizam-se nos distritos de Lisboa (20) e do Porto (16). As restantes distribuem-se por Braga (4), Setúbal (3), Coimbra (3), Aveiro (2), Viana do Castelo (1) e Viseu (1).

Fala-se das diferenças entre ensino público e privado, mas essa não é a única assimetria flagrante, e o problema está muito mais enraizado. Tal como já sabemos da assimetria nas grandes cidades, entre bairros e realidades sociais, temos uma assimetria gritante e injustificável ente litoral e interior. Começamos pelo facto de não haver liberdade de escolha ou, na maior parte dos casos, uma enorme distorção que é a de haver escolha para quem tem dinheiro. Pode escolher ou preparar-se melhor quem tem mais dinheiro e quem mais valoriza o ensino, o que em sim mesmo é um reforço da reprodução social, quando a escola devia ser justamente o contrário: um instrumento de capacitação, liberdade e desenvolvimento, para além da proveniência socioeconómica, alavancando o motor do elevador social.

Repare-se no afunilar de opções: quem tem capacidade económica pode escolher entre ensino privado ou público (sobretudo nas grandes cidades), nomeadamente quando a opção pública não oferece a qualidade adequada; frequentar o ensino público com apoio à aprendizagem extra, com reforço de explicações, o que já só é possível para alguns; frequentar o ensino público em escolas que não estejam a dar resposta é a opção que literalmente resta num contexto familiar que não valorize a educação ou que tenha dificuldades económicas. Isto é um drama, e não é este retrato que estigmatiza a escola. Há casos a romperem com este fado, dos Açores a Vouzela (a Escola Secundária de Vouzela é um exemplo, já falado, de sucesso), mas a tendência da degradação da escola pública é evidente, e falar dela não é denegrir e nem estigmatizar – é não desistir de lutar por algo que queremos e merecemos melhor.

Precisamos de uma reforma profunda, mas, no curtíssimo prazo, há coisas que podem ser feitas: reforçar a monitorização do controlo de aprendizagens e das provas de aferição; retomar os contratos de associação; dar autonomia às escolas para que ajustem os seus quadros de pessoal e o programa pedagógico; e ter um fortíssimo plano de formação de professores, em acréscimo a políticas de atração para a profissão.

Vem a Fenprof dizer que estes rankings “são uma fraude” e “estigmatizam a escola pública”. Fraude é esta política governativa, e o estigma é o resultado das políticas públicas de educação. Ao contrário do que querem fazer parecer, a culpa não é de quem denuncia e informa, ou seja, a culpa não é dos rankings.

Uma última ideia para acompanhar a questão da “refeição quente” de que fala o ministro. Enquanto se pensar que a escola é uma cantina ou refeitório, ou enquanto não se perceber que qualidade e exigência são a melhor escola para quem menos tem, não sairemos desta espiral negativa.
Usando a expressão conhecida de que, “se a educação fosse uma potência externa, declarávamos-lhe guerra”, termino recordando que a nossa educação já está em guerra e a ficar em destroços; já declarámos guerra à política governativa. Chega a hora de alunos e país merecerem uma política de ensino séria, recompensadora e motivadora, de alunos, técnicos, auxiliares e docentes, e que recupere, como deve de ser, a educação como grande motor do elevador social e de desenvolvimento do país.

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