O elefante no meio da sala: programadores e festivais

É inegável a reduzida presença de programadores culturais (mormente municipais) nas áreas da dança contemporânea, performance e multidisciplinaridade.

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Apesar da vasta oferta que o país apresenta, ao longo do ano, em diferentes geografias, escalas e formatos ​nas áreas da dança contemporânea, performance e multidisciplinaridade, é inegável a reduzida presença de programadores culturais (mormente municipais) na maioria destes contextos de referência. Num tempo em que as profissões da cultura/artes têm uma visibilidade cada vez maior e são alvo de crescente reflexão e questionamento, e em que surgiram novas redes culturais de âmbito nacional como a RTCP, esta temática não poderá ser descurada.

Desde a PT – Portuguese Platform for Performative Arts (Montemor-o-Novo), passando pelo GUIdance (Guimarães), DDD – Dias da Dança (Porto), Abril Dança em Coimbra, Festival Cumplicidades e Alkantara Festival (ambos em Lisboa), encontros do DeVIR, Festival Verão Azul e Festival Dance, Dance, Dance (estes três a sul, no Algarve), até ao Temps d’Images (Lisboa), Festival Materiais Diversos (Minde-Alcanena-Cartaxo) ou à Quinzena de Dança de Almada, entre outras, muitas e variadas são as propostas de referência que, ao longo do ano (e bienalmente), se poderia elencar nos campos da dança contemporânea, performance e multidisciplinaridade.

Sendo eventos com identidades/conceitos, estratégias programáticas e abordagens distintas, todos eles constituem faróis e, simultaneamente, barómetros para quem desenvolve a sua actividade profissional nas áreas da direcção artística e programação cultural. Na verdade, afiguram-se fontes privilegiadas de conhecimento empírico e de (re)actualização estética, bem como de reflexão e problematização críticos sobre velhos e novos caminhos de áreas artísticas, à partida, mais exigentes do ponto de vista da programação, mediação, captação e formação de públicos – como sejam a dança contemporânea e suas múltiplas camadas, o disruptivo universo da performance, registos mais experimentais do teatro contemporâneo e as práticas de matriz multidisciplinar.

Estes festivais/encontros/plataformas de referência são ainda importantes para se aceder a uma espécie de “mapeamento” ou radiografia (globais e segmentados) do tecido artístico sobretudo em domínios não mainstream, e para (re)desenhar o percurso evolutivo, em jeito de timeline, de uma plêiade assinalável de criadores, coreógrafos, encenadores, intérpretes, cenógrafos, designers de luz/som. Os espectáculos, bem como as conversas e meetings paralelos e outros formatos de mediação, permitem, por extensão, passar em revista históricos de obras, sequências e ciclos artísticos, bem como esquemas de circulação e impactos nos territórios dessas criações, abrangendo não apenas figuras emergentes e pós-emergentes, como também protagonistas que estão já noutros patamares de maturação inventiva, até artistas de topo, com um trajecto reconhecido e consagrado.

Estas iniciativas desencadeiam ainda um aprofundamento de práticas de networking entre os profissionais dos campos cultural e artístico, não só estimulando e valorizando o contacto, conhecimento e partilha de experiências entre programadores oriundos de diferentes latitudes e realidades socioculturais, como ainda reforçando paulatinamente a coesão do sector cultural e criativo (e, em particular, o domínio da circulação nacional e externa), através da construção de parcerias estratégicas e cooperações, encomendas, co-produções e outras modalidades de trabalho em rede, numa lógica colaborativa.

Last but not least: pela “respiração” subjacente à arquitectura das suas programações, estes contextos culturais propiciam ainda a criação de um espaço vital de informalidade, empatia, cuidado e atenção ao outro. Ter tempo e espaço para parar, conversar, perguntar, escutar, mas também para o contraditório, para a (auto-)crítica, para gritar baixinho e para os silêncios – para, enfim, descalçar as sandálias perante o outro (como dizia certo poeta sufi) e beber, em lugares de inquietação-contaminação-disseminação, dessa fecunda temporalidade.

Mas há um elefante no meio da sala. Ao longo dos anos, um denominador comum parece caracterizar este universo de eventos no panorama das artes de palco em Portugal, sendo até algo relativamente consensual no milieu cultural, ainda que permaneça envolto num certo silêncio como que tácito, acrítico e não assumido: uma presença pouco significativa, e por vezes mesmo residual – há aqui e ali excepções, obviamente, que, no fundo, acabam confirmando a regra –, de programadores, directores artísticos e/ou gestores culturais ligados a entidades públicas, nomeadamente a câmaras municipais, nestas mostras de primeira linha.

No âmbito do processo de credenciação da Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses (RTCP), implementado pela Direcção-Geral das Artes a partir de 2021, existem, pelo menos para já, 85 entidades que desenvolvem programação de um modo regular e continuado em Portugal, e que detêm um conjunto de recursos e valências considerados indispensáveis para que sejam admitidas na aludida rede. Ou seja, haverá, pelo menos, um corpus de 85 responsáveis (entre quadros das autarquias e avençados) pela programação cultural e artística de espaços municipais na sua esmagadora maioria – isto para além de inúmeras outras entidades (e respectivos programadores), públicas ou não, espalhadas pelo país, que ainda não estão integradas na RTCP. Mas onde estão estes profissionais quando se deambula, por exemplo, pelos eventos elencados no preâmbulo deste texto?

Em 2020 tive oportunidade de escrever, neste mesmo lugar, dois ensaios de maior fôlego sobre a figura e perfil do programador cultural. Estamos perante uma função que se centra numa atitude mediadora e de construção quer de relações-ligações dotadas de sentido e de tempo/urgência, quer de dinâmicas empáticas entre criadores/intérpretes, espaços, técnicos, públicos e territórios, ancoradas em porosidades, afinidades, complementaridades e transversalidades. O programador é um dos principais artífices de um processo osmótico que visa uma transformação sociocultural dos territórios, pois as suas escolhas, estratégias e mecanismos de actuação reflectem não apenas princípios e valores políticos e estético-artísticos, mas também uma visão holística e integrada sobre a interacção do humano com os espaços físico-natural e simbólico, com a dimensão estética, com o tempo, com o outro.

Absorção, filtragem, escolha: é nesta tríade que assenta o drive de um programador. Daí que ele não seja “apenas” aquele que estimula a circulação e descentralização de actividades e projectos artísticos; ele próprio se afirma como esponja deambulatória, como alguém que inscreve o seu ofício numa constante e inacabada estrada, que se movimenta e desloca como forma de ver e ouvir melhor, que não se fecha em si mesmo e transpõe a sua zona de conforto, arriscando o improvável, o inaudito, o desconhecido, o não convencional. Ele é também um construtor de pontes – para fazê-las é preciso conhecer bem as duas margens e o rio que as permeia –, muitas delas invisíveis ou, pelo menos, não palpáveis (e por isso mais preciosas ainda), um facilitador exigente, que viabiliza sem descurar o crivo, e um equilibrista inquieto(ante), que se posiciona numa procura incessante de novos balanços e sínteses. Alguém que sabe discernir uma mera agenda de eventos de um consistente plano programático.

Daí que a profissão de programador de artes performativas – à imagem de várias outras na área cultural – atravesse, neste momento, um processo evolutivo necessário e exigente, com os seus inevitáveis desafios e “dores de crescimento”. Há todo um percurso a trilhar, de estímulo, capacitação e valorização laborais, relativamente a um ofício que é, sobretudo, um exercício de sensibilidade e conhecimento, por parte de alguém que, colectivamente, sabe acender um fogo (para que depois nada seja mais como dantes), que transporta consigo aquela “paixão grega” de que Herberto Helder falava, e que acaba marcando indelevelmente os territórios, as comunidades e os espaços onde opera.

Essa necessidade de estar presente é ainda mais premente e útil em áreas como a dança e teatro contemporâneos, a performance ou as linguagens híbridas, nas quais se aglutinam múltiplas abordagens, registos e nuances estéticos, não se compadecendo estas com meras consultas de catálogos digitais e/ou com visionamentos de teasers e trailers promocionais (ou de vídeos integrais). Estas manifestações em particular carecem de uma denodada imersão no objecto artístico (pois há muita informação menos visível e mais subliminar), isto para que o programador-espectador possa efectivamente apreender, ao vivo, a obra de arte em toda a sua amplitude e densidade-complexidade.

Experienciar in loco e em tempo real estas propostas permite ainda aos programadores culturais tirarem ilações mais concretas e esclarecedoras a nível de inúmeros tópicos, como: stage plot e demais exigências técnicas, relação palco-plateia, condições contextuais de fruição, recepção do público, duração e ritmo, arquitectura visual e sonora, texto e dramaturgia, opções de encenação, interpretações (a nível individual e numa visão de conjunto), adereços e cenários, soluções adoptadas para arranque e término do espectáculo, acessibilidade física, social e intelectual, estratégias de comunicação e mediação artísticas (sinalizando “gatilhos”, talking points e outros tópicos apelativos), entre outros aspectos que enformam uma selecção programática sustentada, pertinente, eficaz e defensável.

Nas conversas de bastidor do meio cultural, e inclusive nestes eventos de maior dimensão, é comum elencar-se a indiferença/desinteresse, a desvalorização, o auto-centramento ou o efectivo desconhecimento por parte de muitos programadores como principais justificações para a sua pouca adesão a estas iniciativas de maior escala. Diversos produtores apontam mesmo esse absentismo como uma das razões maiores para o facto de vários criadores e companhias (mais jovens; e ainda e sobretudo aqueles que estão em estádios “intermédios” de crescimento e afirmação, sendo etariamente novos ou não, e que já produziram alguns trabalhos nos últimos anos), sobretudo nos campos da dança e teatro contemporâneos, performance e multidisciplinaridade, não se conseguirem apresentar em muitos dos equipamentos culturais do país, inclusive nos já credenciados e apoiados no âmbito da RTCP. É sabido também, por outro lado, que ainda existe um número relevante de programadores que não acompanha o trabalho dos seus pares, e nem tem por hábito fruir regularmente da oferta desenhada noutras geografias exteriores aos limites dos seus territórios de actuação.

Se estes argumentos têm a sua pertinência, não esgotam, contudo, esta problemática, podendo tornar-se até explicações potencialmente redutoras e abusivamente generalizadoras. Outra justificação – ainda relativa ao perfil de alguns programadores – tem a ver com o facto de um dado segmento de profissionais desta área privilegiar mais certas esferas do mainstream, com especial incidência na área da música (e de um teatro e dança menos experimentais, de cariz mais clássico), quer por uma questão de hábito/rotina/gosto pessoal, quer de menor risco em termos de captação de público e de eventual escrutínio político-institucional, quer ainda de falta de conhecimento aprofundado e actualizado de outros quadrantes das artes.

O panorama formativo nacional disponível nesta área específica (programação cultural, direcção artística e criativa) também ajuda a explicar o posicionamento de vários programadores e a sua relação (ou falta dela) com determinadas áreas e linguagens artísticas. Com excepção da licenciatura em programação e produção culturais (que enfoca nas áreas da programação, curadoria, gestão e produção artística), existente desde 2016 no Instituto Politécnico de Leiria/ESAD das Caldas da Rainha, o resto do país não parece dispor, para já, desta oferta a nível de cursos de 1.º ciclo (licenciaturas).

É verdade que diversas instituições universitárias portuguesas disponibilizam pós-graduações e mestrados em gestão cultural, gestão das indústrias criativas, artes cénicas e comunicação de cultura e indústrias criativas, bem como licenciaturas em estudos culturais/estudos da cultura, mediação artística e cultural, e em ciências da cultura. Mas é essencial, um pouco por todo o território nacional, mais e melhor formação teórico-prática de fundo (licenciatura) – especializada e ministrada por docentes com reconhecido percurso e experiência no terreno –, incidindo aturada e mais afuniladamente sobre os meandros da programação cultural e artística.

Quer seja pela via académica, quer por motivação auto-didacta, conjugadas com hábitos pessoais consolidados de fruição cultural, quer seja ainda por uma prática profissional já relevante na área, é fulcral que o programador privilegie, em paralelo, uma dimensão formativa, em continuidade, ao longo do seu trajecto. O domínio de matérias-chave como sejam, por exemplo, a história das artes performativas e visuais na contemporaneidade, a criação e implementação de políticas culturais, o enfoque nas linguagens experimentais e práticas multidisciplinares, os diálogos no seio da quadratura arte-ética-filosofia-política, a sociologia da cultura, as relações entre geografia humana e cultura, os modelos e práticas de participação cultural e de envolvimento das comunidades, a educação e mediação de públicos, ou a sustentabilidade ambiental e o universo artístico, reveste-se de enorme pertinência para o trabalho do programador cultural.

A ausência ou acentuado défice desse background estrutural “justifica” também, de alguma forma, a existência de ofertas programáticas pouco diferenciadoras e marcadas por processos miméticos, de replicação/decalque acríticos, em relação a paradigmas e propostas patentes noutras geografias culturais mais robustas e mediáticas. Estas novas tendências – ligadas a uma corrente de homogeneização e nivelamento globais que percorre, na contemporaneidade, vários domínios da sociedade – acabam por configurar, em muitos casos, ecossistemas culturais desprovidos de coesão, coerência, diferenciação e aprofundamento.

Os mecanismos relacionais e os instrumentos de mediação que as entidades organizadoras destas mostras de referência adoptam (ou não) na comunicação-envolvimento do universo dos programadores culturais constitui outro tópico central. Há alguns casos, minoritários ainda, de festivais/plataformas/encontros em Portugal que já privilegiam, na captação de públicos-alvo, uma discriminação positiva dos programadores através da criação de condições de acesso e actividades específicas para esse segmento de destinatários: disponibilização de informação artística complementar e de contactos, criação de condições técnico-logísticas para acompanhamento online dos trabalhos, facilitação do encontro presencial com artistas, preços especiais de ingresso, apoio ao alojamento e alimentação, etc.. Mas também aqui há ainda caminho a percorrer.

Por fim, um motivo de importância crescente – até atendendo à evolução da conjuntura socioeconómica –, e que se prende com uma cultura institucional ainda enraizada em não poucas autarquias e noutras entidades públicas face aos profissionais da área da cultura, nomeadamente com a forma como o poder local os percepciona, estimula e capacita (ou não) em termos laborais. E aqui a função de programador cultural não foge à regra, verificando-se este fenómeno tanto em autarquias de grande dimensão como em outras de menor escala: não poucas vereações e chefias intermédias parecem continuar a pensar que autorizar, por exemplo, as despesas de deslocação, estadia e alimentação de um programador durante x dias num festival, encontro ou plataforma de artes performativas constitui um encargo (e não um investimento) pouco pertinente, desnecessário, evitável, supérfluo, luxuriante até.

A abertura de horizontes criativos e o aprofundamento da visão crítica e do conhecimento artístico que a circulação dos programadores possibilita são, sem qualquer dúvida (“é preciso sair da ilha para ver a ilha”, dizia, com lucidez, José Saramago), uma clara mais-valia quer para o programador cultural, quer para a instituição que este representa, quer ainda para o território e comunidades com quem trabalha diariamente. Sem esse olhar mais largo, para lá do que a vista alcança, sem essa postura de humildade e relativização do eu que a viagem proporciona, sem essa sede de curiosidade e espanto que extravasa a espuma dos dias, sem essa capacitação crítica suscitada pela revisão da matéria apreendida, o ofício de programador poderá resumir-se, perigosamente, a um lugar-comum pouco interessante/estimulante/transformador. É, por isso, imperioso garantir que a programação cultural e artística continua a ser uma máquina de guerra contra a banalidade, o previsível, o superficial, o confortável, o inquestionado.

A este título, a Direcção-Geral das Artes tem desenvolvido, nos últimos anos, um trabalho importante de valoração e reconhecimento laborais e simbólicos das profissões da área da cultura, entre as quais as de programador e director artístico, algo igualmente plasmado quer na fixação dos requisitos, ao nível dos recursos humanos, de acesso à credenciação dos equipamentos culturais na RTCP, quer no seu próprio programa de apoio financeiro à programação (que arrancou em 2022 para ciclos de quatro anos e já engloba 38 teatros), o qual requer obrigatoriamente a existência de um responsável, competente e especializado, pela elaboração e subscrição do plano programático apresentado. (Agora será imprescindível que a comissão de acompanhamento desta rede monitorize atenta e rigorosamente junto dos teatros, ao longo de todo o período temporal de apoio, a manutenção dos requisitos e princípios que presidiram à atribuição do mesmo.)

A dinamização, via DGArtes, de programas inéditos de qualificação e capacitação de equipas dos teatros, bem como de encontros de trabalho entre artistas e programadores, para além das importantes acções desenvolvidas pela Acesso Cultura a este nível, passando ainda pelo TNDMII com o seu programa “Nexos”, inserido na Odisseia Nacional e articulado com a RTCP, constituem igualmente medidas estruturais e muito relevantes em prol da dignificação e valorização dos profissionais desta área.

É vital, assim, que o programador não dilua ou descure a sua dimensão de homo viator (as viagens do corpo e do espírito põem em causa, transformam); de cidadão efectivamente implicado com os territórios da curiosidade, espanto, risco-erro e transgressão; de estratega-visionário que conhece o global para agir no local; de espírito crítico atento e comprometido com o seu tempo e com o constante devir, consciente da memória e do trabalho pretérito, e aberto à invenção de novos futuros. Como escreveu Mark Twain em 1869, “a viagem é fatal para o preconceito, a intolerância e a estreiteza de espírito”. Sair deve ser uma missão permanente/imanente e um acto virtuoso.

Em Novembro de 2022, no Teatro do Bairro Alto, no âmbito do Alkantara Festival, a coreógrafa e intérprete Vânia Doutel Vaz apresentou, em estreia absoluta, a criação O Elefante no Meio da Sala. Neste seu primeiro solo, apresenta, como se pode ler na sinopse, “o que é, o que podia ter sido e o que decidiu não ser”. É manifestamente impossível ignorar um elefante numa sala, por mais pequeno que ele seja. Tal como a criadora setubalense, que a postura do programador cultural seja a de proactiva e apaixonadamente dançar (inclusive fora do seu palco), de dançar para ver diferente, de dançar para exorcizar elefantes e outros demónios que ainda possam habitar a sua sala, de dançar para se desafiar e superar, de dançar para reinventar a vida, de dançar para (re)aprender a dançar. Que programar seja sinónimo de dançar no mundo.

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