Quando é que uma caricatura é racista?

A lei, ainda que considerada como a principal medida para aferir quando se um desenho é racista, responde ao contexto que a produz e não pode ser barómetro universal para todas as épocas e situações.

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As imagens satíricas têm força e provocam um impacto em quem as vê. A polémica sobre o alegado racismo de um cartaz exibido numa manifestação de professores no Peso da Régua, ridicularizando o primeiro-ministro, representado como um porco, vem mais uma vez demonstrar a força deste pressuposto. Podemos ser Charlie em 2015 e não ser Pedro Brito em 2023? Os contextos e, sobretudo, as consequências apresentam-se longe de ser simétricos.

A animalização do político, ou o uso “abusivo” de animais no discurso humorístico, faz parte da cultura satírica desde sempre. Renegá-la (não confundir com não a debater ou problematizar) é rejeitar séculos de sátira gráfica. A “desumanização do humano” reproduz uma intenção política e possui um objectivo específico. Mais do que racista, a imagem da polémica parece ser de fraca qualidade artística, como foi salientado pelo cartoonista António, alguém que sabe do que fala, nas páginas deste jornal, mas esta consideração parte de um critério subjectivo. Uma caricatura tem sempre um conteúdo, que no presente caso é difícil de encontrar. O que distingue uma boa de uma má caricatura depende, igualmente, do olhar do espectador, seja esse olhar mais ou menos treinado. Duas pessoas podem ver coisas diferentes numa mesma caricatura. A componente artística / estilística de um desenho pode ser fraca, mas a mensagem que pretende transmitir pode ser poderosa e eficaz, sendo que o contrário também pode ser verdade. No caso, não creio que a caricatura em causa tenha servido plenamente o seu principal propósito, ou seja, a luta dos professores pela dignificação da sua carreira. Passados vários dias continuamos a discutir um desenho e não o motivo do protesto legítimo dos professores no qual a caricatura, que até já era conhecida, foi mostrada. O que torna um desenho racista? Quando é que uma caricatura se pode considerar racista? Como e quem é que mede o racismo de uma caricatura? Onde é que a liberdade de expressão colide com o racismo? As respostas a estas questões não são simples, embora pareçam óbvias.

O bom senso determina que estes limites devem ser os definidos pela lei, ou seja, os inscritos na Constituição e no Código Civil. É de relembrar que o artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 já expressava de forma inequívoca que “a livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei”. Uma imagem pode ser ofensiva desde que não ultrapasse a fronteira da xenofobia, do discurso de ódio, do incitamento à violência e do racismo (precisamente), mas ainda assim esta barreira não nos surge de forma absolutamente clara.

Alguns exemplos podem citados porque ajudam – talvez – a perceber melhor o que está em causa, mas ainda assim é difícil evitar as contradições. Em Setembro de 1898, um jornal da Carolina do Norte (EUA), o News and Observer, publicou um cartoon com o título The Vampire that Hovers Over North Carolina (Negro Rule), da autoria do cartoonista Norman Jennet. A imagem mostrava um vampiro-afro-americano a aterrorizar um grupo de homens e mulheres brancos. A ideia, no contexto político e social da época, não deixava margens para dúvidas. O poder político dos afro-americanos representava uma ameaça para a sociedade branca da Carolina do Norte. Era preciso travá-lo. A ideia era representada não apenas pela urna de voto sobre a qual o vampiro se encontrava como pelo slogan Negro Rule”, que se podia ler nas suas asas. Sob a protecção da lei uma caricatura abusivamente racista podia ser impressa e consumida com sucesso por um determinado público neste contexto.

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O cartoon The Vampire that Hovers Over North Carolina (Negro Rule), foi publicado por Norman Jennet em Setembro de 1898, no News and Observer, um jornal da Carolina do Norte (EUA) DR

Um outro exemplo ainda mais claro. Na Alemanha de Weimar, em 1923, surgiu o jornal Der Stürmer, uma publicação dirigida por Julius Streicher, um obscuro professor primário da Baviera que começou a dar nas vistas pelo ódio racial contra os judeus. O periódico conheceria enorme sucesso. Percebendo “a oportunidade” que o mercado editorial lhe oferecia na Alemanha do pós-guerra, Streicher transformou o seu jornal num título ferozmente antissemita, fazendo as delícias dos seus leitores. Nas suas páginas recorreu-se abundantemente durante décadas a caricaturas para fixar e ampliar estereótipos racistas e xenófobos contra os judeus. Devido ao êxito estrondoso deste tipo de jornais, de que o Der Stürmer era apenas um exemplo, o sentimento antissemita cresceu de forma exponencial na sociedade alemã. O nazismo não pode ser atribuído, claro está, ao sucesso das caricaturas publicadas por esta imprensa, mas o fenómeno ajudou a explicar, em parte, como a sociedade alemã se predispôs a aceitar e a padronizar discursos e práticas violentamente antissemitas no seu quotidiano.

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Cidadãos alemães a ler publicamente páginas do Der Stürmer na cidade de Worms, em 1935. O cabeçalho do cartaz diz: "Com o Stürmer contra Judah". No subtítulo pode ler-se: “Os judeus são a nossa desgraça” DR
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Uma capa do semanário Der Stürmer, de Junho de 1935 DR

Não estamos, obviamente, a comparar o que não tem equivalência. A caricatura do professor Pedro Brito não é equiparável aos desenhos do News and Observer ou do Der Stürmer. Mas a evocação serve para mostrar como a lei, ainda que considerada como a principal medida para aferir quando é que um desenho se torna racista, responde ao contexto que a produz e não pode ser usada como barómetro universal para todas as épocas e situações. Os desenhos do News and Observer e do Der Stürmer eram violentamente racistas e cumpriram um papel nas sociedades que as geraram e consumiram, ajudando a criar um caldo cultural normalizando e institucionalizando o racismo e o antissemitismo. O desenho que circulou no Peso da Régua a 10 de Junho (o dia da Raça de outros tempos) é outra coisa.

Partimos do princípio que não deve haver qualquer restrição à liberdade de expressão, desde que a sua prática não incite à descriminação racial, à xenofobia, ao ódio ou à violência e se situe dentro da lei. Se começamos a tabelar o que se pode dizer ou desenhar e o que não se pode acabamos todos mudos e cegos. A piada ou a caricatura podem ter graça para uns e não ter para outros. Se os que não acham graça proibirem os que acham de ouvir a piada ou de ver a caricatura isso equivale a silenciar quem pensa diferente de nós. O humorista ou o cartoonista têm o direito a não ter graça, embora nesse caso estejam na profissão errada. Pedro Brito é professor e não um artista gráfico, mas isto não o absolve de nada. Aqui entra a questão do bom senso, mas voltamos a falar de juízos individuais e de mediações completamente subjetivas.

Haverá quem considere que a reprodução deste tipo de caricaturas é em si mesma uma forma de violência porque tem o efeito de banalizar um tipo de conteúdo considerado racista. Neste caso exigir bom senso e empatia não será equivalente a censura, mas sim a civilidade. Não creio que seja o caso. Este pressuposto parece-nos circular porque nos conduz ao nível seguinte que é o do estabelecer o limite e do qual ainda não conseguimos sair. Qual o limite sobre o que se deve dizer e desenhar? Quem o estabelece? Como se mede o bom senso e a empatia? Poderíamos expandir este tipo de questionamentos para tudo, sendo que aí cairíamos facilmente na anarquia. É impossível definir quem estabelece o que se pode ou não dizer e desenhar. Em sociedade existem regras e, por mais que não concordemos com todas, não questionamos o facto de existirem leis que normatizam comportamentos.

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António Costa, com os cartazes da polémica atrás, nas comemorações do 10 de Junho no Peso da Régua José Coelho/Lusa

O cartaz exibido pelos professores representa um insulto e é de gosto duvidoso, mas a sátira política tem direito à afronta e ao mau gosto. Tal faz parte das regras da democracia. Uma caricatura nunca é só uma caricatura, mas não creio que estivesse entre os propósitos de Pedro Brito incentivar à violência dos seus colegas sobre António Costa, mesmo desenhado dois lápis a furar os olhos do primeiro-ministro, numa clara alusão metafórica à cegueira com que o Governo tem tratado a sua classe profissional, de acordo com a sua percepção. Também não creio que a animalização de um homem de origem goesa como argumento para expor a oposição de uma parte dos professores à política de António Costa possa evocar preconceitos racistas, da mesma forma que o cartaz representando Passos Coelho com um bigodinho à Hitler evocado por estes dias possa ser considerado uma manifestação de neonazismo na sociedade portuguesa.

Do ponto de vista da mensagem que se pretendia difundir o exercício foi um ato falhado, porque se acabou a discutir mais o desenho do que as motivações dos que empunhavam o cartaz. Normalmente, os assuntos mais sérios são os que proporcionam melhores caricaturas e cartoons, mas tudo depende do talento de quem desenha e do espírito crítico que quem vê. Julgamos que o humor, neste caso o humor gráfico, como categoria de representação da realidade humana cabe em todo lado. A falta de piada é que não serve bem o humor nem coisa nenhuma.

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