Escrevi

Escrevi para dar um corpo à angústia, para personalizar os medos, para ter palavras. Escrever para mim foi já escrever para alguém.

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Não escrevi para acertar contas, mas para dar conta. A linguagem é o que temos para tentar dar conta do sofrimento. Não é suficiente, mas é o que temos. Para criar uma narrativa que se possa suportar. Escrevi para trazer sentido à experiência.

Era isso que procurava fazer na psicanálise: narrar, tentar elaborar o sofrimento. Foi o que procurei fazer na escrita. A escrita transformou-se em escuta. Escrevi para ser ouvida.

Como se sabe, as palavras "veneno" e "remédio" têm a mesma origem, vêm de pharmakon, do grego. Uma mesma palavra para significar o que pode matar e o que pode curar. A linguagem é veneno e remédio: o que faz sofrer, mas também o que permite processar o sofrimento. O que causa o golpe, mas que também tem o efeito de sutura.

Escrevi para regenerar. Para deixar cair uma pele, para tentar vestir uma nova. Para ir largando camadas. Como uma serpente.

Escrevi para dar um corpo à angústia, para personalizar os medos, para ter palavras. Escrever para mim foi já escrever para alguém.

A fuga sempre foi o destino dos meus traumas. Escrevi para enfrentar.

O campo semântico de cuidar vem de uma etimologia inesperada, do latim cogitare, que significa pensar. Pensar é uma forma de cuidar. Escrever é também cuidar. Escrevi para cuidar, para dar atenção, para dedicar tempo aos assuntos.

Muitos temas estavam enevoados, escondidos. Bloqueados por ansiedade ou pelas circunstâncias. Escrevi para limpar, para destapar, para contar.

A desordem pode começar a escapar das gavetas, a sair por fora, a acumular-se. Escrevi para arrumar.

Marguerite Duras dizia que “Escrever significa tentar saber aquilo que se escreveria se fôssemos escrever. Só se pode saber depois. Antes é a pergunta mais perigosa, mas também a mais comum”. Escrevi para descobrir um problema, que antes de escrever não sabia tão claramente qual era. Escrevi para fazer um diagnóstico.

O meu psicanalista dizia que, para escrever, não era preciso ser escritor, mas que era preciso ser autor. Porque o objectivo da psicanálise, dizia, era que alguém se tornasse autor de si mesmo. A palavra "autoria" traz na sua raiz "auto", no sentido de singular, de próprio. A escrita, como um instrumento de singularização. Escrevi para ser sujeito, para ser pessoa no meu próprio corpo.

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