“Sempre existimos”: uma caça ao tesouro para conhecer a história queer lisboeta

Bares e edifícios misturam-se com um passado de escritores, luta e subversão. Alex Pollard quer ajudar a revelar a história queer da capital que “está escondida, é obscura, foi destruída, perdida”.

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Equipa Aquile Naquile que participou na caça ao tesouro LGBTQ: Lidiia Demchenko, da Ucrânia, Katia Zanotti, da Itália, José Lourenço, de Portugal, Maria Ihler, da Noruega, e Marco Fabris, também da Itália nuno Ferreira Santos
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Do Príncipe Real ao Chiado, da discoteca Trumps à Inquisição, do manifesto homossexual de 1974 ao bar Maria Caxuxa: quanta história LGBTQ lisboeta cabe numa caça ao tesouro ao longo de uma tarde de domingo? Bastante. Parte dela informativa, outra parte ligada à boémia. Mas alguma capaz de arrancar gargalhadas, apesar de documentar um passado sombrio e de perseguição.

É o caso da paragem número quatro de Lisboa Queer – uma Caça ao Tesouro na História LGBTQ, no Jardim Botânico, onde se fica a conhecer os vários actos sexuais que eram objecto de multa durante o Estado Novo, com direito a um placar para as pessoas ficarem informadas.

Segundo os relatos da época, em espaços como aquele jardim, a Tapada da Ajuda, o miradouro dos Montes Claros havia “um aumento de actos atentatórios à moral e aos bons costumes”, lê-se no poster de 1953 da Câmara Municipal de Lisboa com a Portaria n.º 69035 – Policiamento de Logradouros Públicos e Zonas Florestais.

O guia em papel indica o percurso a fazer
Uma das paragens foi à frente da discoteca Construction
Outra paragem foi no GAT Checkpoint Lx, um centro de saúde onde homens que têm sexo com homens podem testar-se para doenças sexualmente transmissíveis
O guia tem várias explicações sobre os lugares onde a equipa tem de parar NFS Nuno Ferreira Santos
A equipa de saída do Jardim Botânico, após escolher o nome Aquile Naquile
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O guia em papel indica o percurso a fazer

Dentro do quadro das infracções possíveis, a pior seria “com a língua naquilo”, que dava direito a 150 escudos de multa, mais detenção e fotografia. Mas a que foi alvo de maior conversa foi outra. “Porque é que ‘aquilo na mão’ [30 escudos] leva uma multa maior do que a ‘mão naquilo’ [15 escudos]?”, questiona Marco Fabris, italiano a viver em Lisboa desde 2016, no meio dos risos causados pelo léxico legal de um país que se alimentava de Fátima, fado e futebol, asfixiado por muitas brumas, onde palavras como pénis e actos como sexo anal não eram escritos à luz da lei.

O Príncipe Real foi o início da caça ao tesouro que reuniu Marco Fabris, Lidiia Demchenko, da Ucrânia, Maria Ihler, da Noruega, Katia Zanotti, também da Itália e José Lourenço, o único português da equipa a que a Fugas se juntou após Alex Pollard ter apresentado o jogo.

“Não é competitivo, não é uma corrida, calma. Vão ter oportunidade de relaxar no The Late Birds Hotel”, explica Alex Pollard, referindo-se ao hotel do Bairro Alto, pensado para a comunidade gay masculina, onde a caminhada de cerca de três horas termina. O inglês é um apaixonado pela história LGBTQ, foi o idealizador da gincana e está contente com o número de participantes que tem: 18 pessoas. “Boa participação, é um dia brilhante.”

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Alex Pollard, inglês que criou a caça ao tesouro Maria Abranches

De seguida, Pollard explica as regras do jogo. Há um conjunto de 31 paragens, incluindo a inicial, “que são uma combinação de lugares históricos com algo sobre a Lisboa queer” e também bares e discotecas LGBTQ, adianta. Cada uma das várias equipas tem um guia com a sequência da rota e informação sobre cada paragem e algo para fazer: responder a uma pergunta; tirar uma fotografia; decifrar um enigma; fazer um desenho.

“Se virem outro grupo a dirigir-se para outro lado não entrem em pânico, eles estão apenas numa rota diferente”, esclarece Alex Pollard. No fim, ganha quem tiver mais pontos obtidos com os desafios cumpridos, onde em alguns casos a criatividade é compensada. “Para quem não conhece muito bem Lisboa, espero que isto seja uma boa introdução para a cena gay” da capital, diz.

O desafio para a paragem do Jardim Botânico é tirar uma fotografia a simular um dos “actos imorais” alvo de multa do Estado Novo. Depois, é preciso enviar a fotografia para o recém-formado grupo do WhatsApp da caça ao tesouro com o nome da equipa que, a partir de então, passou a chamar-se Aquile Naquile, numa referência a uma das modalidades de actos sexuais alvo de multa (50 escudos), mas com a pequena subversão – que faz toda a diferença – da linguagem neutra.

Caminhada lúdica

Do Jardim Botânico, a rota leva para as ruas abaixo onde proliferam bares e discotecas frequentados pela comunidade queer de Lisboa. Há o Construction, o Gato Verde, o Shelter Bar, o Finalmente, entre tantos outros que fazem parte das paragens do jogo. Na Praça das Flores fica o antigo Insólito (agora o Inda Noite é uma Criança), que no pós-25 de Abril foi um dos lugares onde havia espectáculos com travestis, reflexo da abertura que a revolução trouxe.

“O meu plano era encontrar episódios que tornam a história em algo real, não apenas uma data, mas a experiência de alguém, e algo que as pessoas queer possam se relacionar”, explica Alex Pollard à Fugas. “Porque a nossa história está escondida, é obscura, foi destruída, perdida, nunca registada em primeiro lugar.”

O inglês apaixonou-se por Lisboa desde a sua primeira visita, no início da década de 1990, e decidiu vir viver para a cidade mais recentemente, após o Brexit. “Como exílio político dos horrores de um Governo populista de direita e os horrores do Brexit, este parece ser um lugar feliz e muito seguro para se estar”, admite Alex Pollard, que esteve ligado à militância LGBTQ no Reino Unido na década de 1980, tirou um mestrado em estudos queer e nas últimas décadas trabalhou na área da saúde no seu país.

Agora, a caça ao tesouro faz parte de vários passeios que quer desenvolver para obter uma sustentabilidade económica. “Amo Lisboa”, afirma. “Estou interessado em partilhar algo sobre a história política e cultural, o que acho que traz mais envolvimento do que referir apenas algumas datas e apontar para um edifício bonito.” O 25 de Abril e o Marquês de Pombal são temas que tem na mira, mas resolveu começar por um passeio queer. “Era o tema mais interessante para mim.”

Para isso, o inglês fez uma pesquisa sobre a temática LGBTQ e a capital. Fernando Pessoa e os seus poemas homoeróticos, Abel Botelho e o seu romance O Barão de Lavos, a jornalista Virgínia Quaresma, são algumas das personagens que entram na conversa desta caminhada lúdica, que vai cosendo geografia com cultura, o universo LGBTQ com o passado do país, a história de Lisboa com a história pessoal de quem hoje pode saber de cor os cruzamentos do Bairro Alto, mas não necessariamente a sua mitologia.

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O grupo à frente da discoteca Trumps, no Príncipe Real

“Certas coisas que li no guia já sabia, mas não sabia os factos que ligavam os pontinhos todos”, diz à Fugas José Lourenço, que é epidemiologista na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e dá o exemplo do bar Maria Caxuxa, no Bairro Alto, que conhece bem. Segundo o roteiro, o nome do bar está relacionado com Maria Cachucha, uma mulher de Torres Vedras que ficou conhecida por ter bigode, matar bois e ter comportamentos associados ao género masculino. Em 1942, ela foi tema de um artigo da revista Eva.

“É fascinante ler o artigo porque ela é uma personagem enorme e é inflexível. Não tem vergonha de si própria, não é tímida: ‘Sim, isto sou eu, como eu vivo. Isto é o que eu quero e é o espaço que construí para mim’”, diz Alex Pollard.

Em cada rua, uma história

Há, ao longo da caça ao tesouro, paragens sobre espiões e amantes, trabalho sexual e crime, política e censura. Há a Inquisição. “Entre 1547 e 1768 milhares de nobres, plebeus e escravos foram investigados por sodomia, e 30 foram queimados”, lê-se no guia, que conta sobre os relatos da vida gay lisboeta do século XVII e de “redes de homens que trocavam anéis”.

“Num mundo em que por vezes nos dizem que não temos o direito de existir ou que as pessoas queer são uma nova invenção, é importante contradizer estas narrativas de exclusão”, diz Alex Pollard, justificando a importância de se conhecer estas histórias. “Sempre existimos e isso ajuda as pessoas a compreenderem que não são excêntricas, ou estranhas, ou uma novidade.”

Já quase no fim da caminhada, o grupo aproxima-se do edifício do antigo jornal O Século, na Rua do Século, onde trabalhou Virgínia Quaresma, uma das “lésbicas republicanas” referidas nesta paragem, juntamente com Maria da Cunha, poeta e uma das companheiras de Quaresma.

“Gosto de temas sobre as lésbicas, mas não gosto que seja no fim porque agora estou cansada e não absorvo a informação tão bem”, desabafa Maria Ihler, que está a fazer um mestrado sobre direitos humanos à distância e vive há alguns meses em Lisboa.

Mas a estudante norueguesa tirou proveito da tarde. “Foi divertido, uma mistura de história profunda, mas também com bares e lugares contemporâneos para ir. Aprendi muita coisa. Em cada rua havia algo”, explica, já no fim da caça ao tesouro, sentada no hotel. “Faz-me sentir ligada aos locais, à comunidade gay e a apreciar os espaços.”

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