Um arrogante e inaceitável alheamento

Da interpretação ideológica dos cidadãos à recusa da “classe” em mostrar-se disponível para pôr em questão práticas jornalísticas intoleráveis…

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Manifestamente, a atualidade das últimas semanas tem suscitado mais reações do que é habitual. Sobretudo críticas mais ásperas no que diz respeito ao tratamento desta atualidade pelos media e particularmente pelas televisões, dominantes em matéria de informação. Basta ver o que se diz e escreve publicamente nas chamadas “redes sociais”, em prédicas pouco discretas de cafés e restaurantes, como em conversas mais íntimas entre amigos ou conhecidos.

Os que formulam estas opiniões fazem globalmente duas afirmações: os anteriores governos de direita conseguiram pôr gente deles à frente das televisões; na sua grande maioria, os jornalistas estão à bota do atual Presidente da República e querem absolutamente deitar abaixo este Governo. Afirmações que muitos reforçam garantindo terem deixado de ler jornais, ouvir rádios e sobretudo de ver telejornais.

Perante a vivacidade de tais acusações, jornalistas no ativo, e por vezes outros um pouco arredados das redações, reagem de maneira classicamente corporativista. Com a habitual argumentação da “classe”: que querem os críticos? Que os factos sejam escamoteados? Que se censurem realidades desagradáveis? E acrescentam: a verdade é que militantes e notórios simpatizantes do Governo não suportam a independência dos jornalistas e da informação!

Se a abordagem dos cidadãos críticos em relação à informação dominante é quase sempre caricatural e simplista, não é menos verdade que a reação dos jornalistas também o é. É certo que as práticas usuais do jornalismo português e sobretudo do jornalismo televisivo são fruto de media pobres em meios financeiros, técnicos e humanos. Mas também o são de um jornalismo ativista, militante, formado segundo cartilhas em que o rigor e serenidade de tom não fazem parte das componentes de base de uma informação de qualidade exigente. Um jornalismo que sonha com Watergates caseiros, sejam quais forem os comprometimentos que isso supõe.

É verdade que militantes e simpatizantes “engagés”, tanto aqui como noutros países, esperam, antes de mais, que os media proponham “verdades” que lhes confortem a fé e acalentem a alma. Mas cidadãos há que esperam dos media uma informação, tratada com as desejáveis atenção, competência e rigor, sobre o que é realmente significativo em termos sociais e terá potencialmente incidências na própria vida quotidiana.

Do que estão fartos estes cidadãos críticos é de uma informação tratada de maneira folhetinesca, com o mesmo tema de abertura dos jornais, durante dias e dias e mesmo semanas a fio: incêndios, covid, urgências hospitalares, maternidades, Ucrânia, TAP, computador de ministério… De uma informação à base de declarações múltiplas do Presidente da República (uma, duas… cinco vezes no mesmo jornal) e dos quase sempre mesmos líderes partidários, em que o jornalista mais não faz do que canalizar o que eles disseram. De “diretos” problemáticos, desprovidos muitas vezes da mais elementar pertinência jornalística. De reportagens em que a principal e até mesmo única imagem é a do jornalista e do eterno modelo de entrevistado (autarca, chefe de força de segurança ou de bombeiros…). De grandes reportagens que mais não são do que correspondências narrativo-editorializantes. De uma indecente abundância de faits divers sem incidências sociais e que em nada traduzem uma evolução significativa do tempo e o modo em que vivemos. E de uma “overdose” diária de futebol e de declarações estapafúrdias de presidentes, treinadores, jogadores e adeptos.

Mas, embora os telejornais sejam duas a quatro vezes mais longos do que é habitual na maioria dos países europeus, é por de mais notória a quase geral insipidez da atualidade estrangeira e internacional, da atividade económica, das movimentações da vida social e da vivacidade cultural. E que boa parte, se não a maioria, dos jornalistas no ativo não queira tomar a devida distância crítica em relação a uma prática e uma “cultura jornalística” que nos conduz às cegas para uma fragilização do Estado de direito e destabilização da democracia, é ainda mais inquietante…

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