A (in)capacidade para fazer testamento

Em última instância, caberá ao notário, sob sua responsabilidade, determinar se o testador tem ou não tem capacidade para outorgar o seu testamento.

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Nos últimos anos, ocorreram, em Portugal, alterações significativas ao estatuto da capacidade jurídica, por força da adaptação ao nosso ordenamento da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (também conhecida, simplesmente, por Convenção de Nova Iorque).

Esta convenção corresponde a um importante instrumento de afirmação da autonomia das pessoas com deficiência, estabelecendo que a sua vontade deverá ser respeitada e aproveitada até aos limites do possível. O mesmo é dizer, na prática, que só se poderão aplicar quaisquer limitações judiciais à capacidade jurídica das pessoas com deficiência, quando o problema não possa ser ultrapassado com recurso aos deveres de proteção e de acompanhamento comuns, próprios de qualquer relação familiar.

Pretende-se, assim, por princípio, assegurar que todos temos capacidade jurídica em condições de igualdade, sem restrições quanto à propriedade ou herança de bens e ao controlo dos assuntos económicos e sociais. O ponto de partida da lei é, assim, o de que todos somos considerados capazes para organizarmos e gerirmos as nossas vidas.

Ora, um dos aspetos mais relevantes das nossas vidas é precisamente o do fenómeno sucessório.

Qual deve ser então a atuação do notário perante o testador a quem foi decretada uma medida de acompanhamento, mas sem que da sentença decorra qualquer limitação à capacidade para testar?

O testamento pode ser definido como o ato unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou parte deles. A regra geral é a de que podem testar todos os indivíduos que a lei não declare incapazes, ou seja, todos aqueles que consigam exprimir e conformar sua vontade, de forma clara.

Conforme dissemos, de acordo com o paradigma atual ao nível desta matéria, o princípio-base é o de que todas as pessoas com mais de 18 anos de idade possuem capacidade jurídica. Esta mudança foi introduzida no nosso país pela Lei n.º 49/2018 de 14 de agosto (em vigor desde 10 de fevereiro de 2019) que criou o regime jurídico do maior acompanhado e eliminou os institutos da interdição e da inabilitação.

Até à entrada em vigor do novo regime, as pessoas que fossem declaradas interditas ou inabilitadas eram consideradas incapazes para testar. Hoje, os maiores acompanhados são, em regra, capazes para testar.

Em face disto, e tendo em conta o enquadramento jurídico desta questão (e, em particular, os textos internacionais como a já citada Convenção de Nova Iorque, mas também a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia), parece que o que se exige ao notário é que desempenhe um papel de acompanhamento, apoio ou suporte, que permita que as pessoas que possuam algum tipo de incapacidade possam estar em plano de igualdade com as demais e, dessa forma, realizar os seus negócios jurídicos, mesmo quando tais negócios correspondam a um testamento.

A incapacidade é, assim, a exceção. Os maiores acompanhados só não poderão fazer testamento nos casos em que a sentença de acompanhamento assim o determine.

Tratando-se de uma exceção, não se pode fundamentar a falta de capacidade de um maior acompanhado para outorgar um testamento nem na aplicação analógica, nem na interpretação extensiva de normas que pertençam a outros regimes de incapacidade. Essa conclusão terá necessariamente de resultar da sentença de acompanhamento.

Assim, por exemplo, uma limitação judicial da capacidade do maior acompanhado para a prática de determinados atos, não pode interpretar-se como sendo também privativa da capacidade para outorgar um testamento. O testamento será válido se respeitar as formalidades de forma e substância ditadas pela lei. Será válido, se o juízo de qualificação feito pelo notário permitir concluir que o testador manifesta e compreende o alcance das suas declarações e das disposições que faz.

Mais, caberá ao notário, sem prescindir da sua imparcialidade, permitir que o testador desenvolva o seu próprio processo de tomada de decisões, apoiando a compreensão do alcance e consequências das suas disposições e contribuindo, com os ajustes que considere necessários, para que o testador possa expressar os seus desejos e preferências.

Aliás, não faltam ao notário mecanismos aos quais poderá recorrer para realizar esta tarefa de apoio. Pense-se, a título de exemplo, em instrumentos como sistemas de aumentativos de leitura, leitura em braile, pictogramas, sistemas multimédia, intérpretes, sistemas de apoio à comunicação oral, linguagem gestual, entre outros.

Em face do que antecede, podemos afirmar que, em última instância, caberá ao notário, sob sua responsabilidade, determinar se o testador tem ou não tem capacidade para outorgar o seu testamento.

E será assim, mesmo que o tribunal tenha decretado medidas de acompanhamento ao testador (não restritivas da capacidade de testar) e, por maioria de razão, mesmo que em momento ulterior à outorga do testamento venha a confirmar-se judicialmente de que o testador, à data da realização do ato, já padecia de limitações cognitivas que, eventualmente, justificariam a aplicação de algumas medidas de acompanhamento.

É a garantia da segurança e certeza jurídica que a intervenção qualificada do notário pode e deve oferecer à comunidade.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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