Raciocínio motivado

Os cenários de dissolução do Parlamento, alimentados com sofreguidão, bem como o linchamento público e os ralhetes de mestre-escola, refletiram a prioridade das emoções sobre o raciocínio imparcial.

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Os episódios recentes da política portuguesa, envolvendo uma acesa troca de argumentos entre protagonistas institucionais, partidos da oposição e comentadores, foram uma demonstração pública, recorrente, esplendorosa, do raciocínio motivado. Os cenários que apontavam para a dissolução do Parlamento, alimentados pela sofreguidão dos seus proponentes, bem como os atos de linchamento público e os ralhetes de mestre-escola, com desprezo absoluto pelo “dever de civilidade”, refletiram a prioridade das emoções negativas sobre o raciocínio imparcial e objetivo.

Tal como escreveu Pacheco Pereira (PÚBLICO, 6 de maio), alguma cobertura jornalística nada teve a ver com o jornalismo. No dia 2 de maio, a comunicação social transformou-se num lamentável comício político, numa excitação intrusiva cheia de intencionalidade, má-fé, dramatização e julgamentos de carácter, com desejos manifestos transmutados em previsões erradas.

Estiveram presentes as dificuldades na comunicação que caracterizam os tempos atuais. “Nós” e “eles” a personificarem a delimitação de campos opostos que se antagonizam, muitas vezes, à custa de um raciocínio intuitivo, superficial, captando suspeições e fabricando inimigos, inviabilizando as possibilidades de um diálogo positivo e transformador. Estiveram em causa os anjos e os demónios do raciocínio motivado, ou seja, os processos não conscientes que ocorrem numa fase precoce do processamento da informação. O pensamento consciente, por outras palavras, é a carroça, não é o cavalo que a puxa. O raciocínio explícito não explica a causa do nosso comportamento, antes serve o objetivo de o racionalizar. O nosso raciocínio não serve necessariamente para apurar a verdade, antes serve para nos ajudar a argumentar, a tentar convencer e a manipular o nosso interlocutor.

As pessoas podem resolver as diferenças de opinião mediante estratégias de raciocínio motivado que ajudam a manter as suas crenças. Estas estratégias incluem a invalidação das fontes de informação ou o abraço a outras explicações que preservam uma mundovisão anterior à informação discrepante, uma tarefa que pode não apenas satisfazer motivos individuais, mas também ajudar a manter a integração em grupos sociais relevantes, em especial quando as crenças são centrais à ideologia desses grupos. A necessidade de aceder a um conhecimento preciso e objetivo pode ser menos crucial do que preservar a integração social na realidade epistémica do grupo.

A produção de argumentos é muitas vezes um processo tendencioso, enviesado, porque nos limitamos a usar razões que suportam as nossas crenças prévias. E é também um processo preguiçoso, porque não fazemos, geralmente, um escrutínio cuidadoso das razões que apresentamos. No debate político, os intervenientes constroem “predisposições simbólicas” numa fase precoce e conservam-nas relativamente estáveis ao longo da vida. A ativação ou “processamento simbólico” destas predisposições tem uma natureza automática e afetiva, condicionando as opiniões, de forma consistente, através do papel mediador do afeto, um papel alegadamente indiferente ao pensamento racional, deliberado, consciente. Mais do que concordar ou discordar, através da razão, é muitas vezes determinante gostar ou não gostar, através do afeto, ou seja, as pessoas tendem a ser influenciadas pela primazia do afeto e a votar, assim, na ideia preferida, no alvo de culpa, no político de que mais gostam.

Neste sentido, a persuasão, e não a verdade, é a variável chave numa sociedade democrática. Aquilo em que as pessoas acreditam é mais importante do que a verdade porque aquilo que as pessoas fazem no mundo resulta, em parte, das suas crenças. Ora, os meios de informação têm a sua própria ontologia, uma particular construção da realidade que orienta a nossa forma de ser e estar com os outros. E também decidem, com a sua epistemologia própria, aquilo que devemos valorizar, o modo como pensamos e sentimos, praticando vieses e distorções que influenciam, através de um repetido exercício de persuasão, o caminho que fazemos para chegar ao conhecimento e significado das coisas. Nenhum sistema democrático é imune às imperfeições da comunicação. Mas o exercício da persuasão é a consequência natural da liberdade de expressão numa sociedade democrática.

Nas sociedades ocidentais, vivemos num tempo de aparente degradação democrática, com fenómenos de polarização e estridência emocional que fragmentam a comunidade e potenciam antagonismos irredutíveis, em nome das identidades de grupo, políticas ou ideológicas. As redes sociais não toleram espaço para a escuta refletida, para a compreensão mútua, abusando de algoritmos que nos colocam em competição e conflito, uns contra os outros, causando experiências de humilhação pública e acelerando processos de polarização emocional, política e ideológica, em palcos digitais propícios ao raciocínio motivado. A democracia degenerou em infocracia. Não nos escutamos uns aos outros porque a comunicação digital, uma comunicação sem comunidade, anula as possibilidades de escuta.

Muitas pessoas sentem-se incapazes de conseguir boas vidas, para si e para as suas famílias. As comunidades sentem-se incapazes de prever o futuro, tolhidas por poderes distantes, pela guerra e pelas características impessoais dos mercados. E os debates públicos não conseguem o equilíbrio construtivo do consenso, antes incentivam algumas pessoas a querer silenciar, pura e simplesmente, os seus opositores, denunciando uma ameaça corrosiva à saúde da democracia através de uma irritante aspereza na comunicação interpessoal. Confirma-se assim a “irracionalidade comunicativa” do momento presente, uma evidência nefasta que não pede um aperfeiçoamento legislativo, nem reformas institucionais, nem a escolha de políticos mais virtuosos, mas, acima de tudo, um maior envolvimento participativo dos cidadãos, com dedicação e compromisso, para uma melhoria consistente na qualidade da comunicação pública.

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