Temos uma “sopa” de pesticidas no nosso corpo e vai ser difícil acabar com ela

União Europeia quer reduzir em 50% até 2030 o uso de pesticidas químicos na agricultura. Contaminam o ambiente, e as crianças são mais atingidas. Mas há países que continuam a querer usá-los.

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As crianças pesam menos que os adultos, logo ingerem uma maior quantidade de alimentos por quilo de peso corporal, logo estão mais expostas à contaminação pelos pesticidas Dylan Martinez/REUTERS

Venderam-se cerca de 350 mil toneladas por ano de pesticidas na União Europeia entre 2011 e 2020 e, apesar dos esforços para reduzir o seu uso, a agricultura europeia depende destes produtos químicos para manter altos níveis de produção. “Mas a agricultura na UE produz 3200 calorias por dia para cada cidadão europeu, não tem problemas de produção. Devíamos era ter legislação que desse primazia ao princípio da precaução no uso de pesticidas, o que não acontece”, afirmou Violette Geissen, da Universidade de Wageningen (Países Baixos), numa videoconferência organizada pela Agência Europeia do Ambiente para apresentar a ciência mais recente sobre o impacto dos pesticidas na saúde humana e no ambiente.

Embora alguns grupos de pesticidas tenham sido proibidos nos últimos anos, os resíduos que contaminam a terra, a água, o ar, as plantas, os nossos corpos e os dos animais são duradouros. Em 2020, com base nos dados que os Estados-membros da UE enviam para a Agência Europeia do Ambiente (EEA, na sigla em inglês), foram detectados um ou mais pesticidas acima dos limites legais em 22% das águas superficiais monitorizadas na Europa, incluindo rios e lagos, diz o relatório.

Estas substâncias misturam-se numa “sopa” de ingredientes químicos que não foi previamente estudada nem testada em laboratório. “Esta mistura a que estamos hoje expostos tem um alto custo em termos da saúde humana e dos ecossistemas. É uma caixa negra”, afirma Violette Geissen, que coordenou o projecto europeu Sprint para estudar os efeitos dos pesticidas em seres humanos, animais, plantas e ambiente.

“Após 60 anos de aplicação de pesticidas, seria legítimo pensar que há referências sistemáticas sobre o seu uso. Mas não há, está uma coisa em cada lado, não há uma compilação organizada dos riscos relativos aos pesticidas”, sublinhou a investigadora. O projecto, que recolhe informações em vários países europeus, pretende abrir esse caminho.

Mas uma coisa que é difícil de fazer, sublinhou Violette Geissen, é testar, ou reproduzir em laboratório, as misturas de substâncias químicas constituintes dos pesticidas que se encontram no ambiente, e no nosso organismo. “Foram detectadas substâncias de risco alto ou moderado em 60% dos peixes, ou em 70% das abelhas”, exemplificou Violette Geissen.

Reduzir 50% até 2030

No âmbito do Pacto Ecológico Europeu e da Estratégia do Prado ao Prato, a Comissão Europeia identificou a necessidade de reduzir a dependência do bloco de pesticidas. Identificou como objectivo até 2030 uma redução de 50% do uso e do risco dos pesticidas químicos; uma redução de 50% do uso dos mais perigosos; e que pelo menos 25% dos terrenos agrícolas da UE sejam usados para agricultura biológica.

Sarah Wiener, deputada europeia e autora do relatório sobre a Regulação do Uso Sustentável de Produtos de Protecção das Plantas no contexto da Comissão de Ambiente do Parlamento Europeu, conduziu o debate e lançou uma interrogação. “No meu relatório, proponho que o objectivo seja ir reduzindo até 80% o uso de pesticidas sintéticos na agricultura europeia até 2030, começando com os mais perigosos, para nos tornarmos livres destes pesticidas sintéticos em 2035. É demasiado?”

“Não, precisamos de deixar de usar os pesticidas que usamos até 2030, e precisamos de uma lista de substitutos”, respondeu Anja Hazekamp, outra deputada europeia e vice-secretária da Comissão de Ambiente do Parlamento Europeu.

Dario Piselli, da EEA, salientou o papel delicado da Comissão Europeia como incentivador da mudança ao mesmo tempo que tem de moderar os ímpetos mais ambiciosos. “A estratégia Do Prado ao Prato tem uma base científica, mas também é política. O objectivo de 50% reconhece aquilo que é possível fazer, indica o caminho correcto que devemos seguir”, defendeu.

Autorizações de emergência contornam regras

Estão aprovados na Europa mais de 450 ingredientes activos de pesticidas, disse Loïc Rambaud, da Saúde Pública de França, coordenador de um outro projecto internacional (HBM4EU), que durou entre 2017 e 2022, e que, entre outras coisas, avaliou os riscos dos pesticidas para a saúde humana. O projecto concentrou-se em detectar apenas alguns dos muitos pesticidas, e encontrou níveis de exposição generalizada a vários deles.

Por exemplo, o glifosato – cujo uso a Comissão Europeia prolongou em Dezembro passado por mais um ano (até ao fim de 2023). “As crianças estão mais expostas do que os adultos, talvez por causa da dieta, consomem mais frutas e vegetais”, disse Loïc Rambaud. “Mas provavelmente o factor mais importante é que pesam menos que os adultos, logo, ingerem uma maior quantidade de alimentos por quilo de peso corporal, logo, estão mais expostas aos resíduos dos pesticidas na comida”, explicou.

Alguns pesticidas que estão proibidos na União Europeia, como alguns neonicotinóides, podem ser, no entanto, utilizados se um Estado-membro pedir uma autorização de emergência para uma substância específica, durante 120 dias. Num documento de 2022 da Fundação Heinrich Böll Stiftung, contabilizava-se que, nos últimos seis anos, tinham sido permitidas 3600 excepções nos vários países da UE.

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Os polinadores, como as abelhas, são afectados por pesticidas que até já foram proibidos na UE Jamal Said/REUTERS

Está proibido o uso ao ar livre de quase todos os pesticidas da classe dos neonicotinóides, mas dois deles podem ainda ser usados, apesar de terem sido impostas restrições em 2013. A acetamiprida pode ser usada até 2033, enquanto está a ser reavaliada, e o tiaclopride está também a ser reavaliado.

Um indicador da Comissão Europeia foi usado para calcular em 38% o risco acrescido destas autorizações de emergência, diz a avaliação divulgada nesta quarta-feira pela EEA sobre o ponto da situação do impacto dos pesticidas na saúde humana e nos pesticidas. “É notável que alguns países tenham dado autorizações de emergência repetidamente para o uso dos insecticidas neonicotinóides tiamethoxam, clothianidina e imidacloprida, que já não estão autorizados na UE, porque são tóxicos para as abelhas”, salienta o relatório. São regularmente encontrados pesticidas em colónias de abelhas, além de estes compostos químicos serem letais para outros insectos polinizadores.

Em Janeiro deste ano, o Tribunal Europeu de Justiça determinou que deve deixar de ser permitido aos países da UE terem estas autorizações de emergência para usar pesticidas que matam as abelhas. Mas a questão ainda está a gerar polémica na UE, com algumas ambiguidades (como a de se o tribunal se está a referir ao mercado internacional ou à Comissão Europeia) a serem esgrimidos pelos partidários do uso continuado destes pesticidas.

“Uma substância activa pode ser aprovada se for considerada segura para a saúde e não tiver efeitos inaceitáveis no ambiente. No entanto, limitações nos métodos de testagem, disponibilidade de dados e obrigações de comunicar os efeitos adversos dos pesticidas aprovados fazem com que estes efeitos só sejam reconhecidos passados muitos anos”, lê-se na avaliação divulgada nesta quarta-feira pela EEA, na sigla em inglês, sobre o ponto da situação do impacto dos pesticidas na saúde humana e nos pesticidas.

“Historicamente, esta dinâmica levou ao uso continuado de substâncias que mais tarde se propôs serem proibidos, como o fungicida dimoxistrobina [a decisão de proibir foi tomada em Março último, para entrar em vigor em 2024]”, diz ainda o documento, apresentado por Dario Piselli, especialista em ambiente, saúde e bem-estar da EEA.

“A minha esperança é que possamos trabalhar com todas as partes envolvidas, com os agricultores, para criar um novo sistema de produção alimentar. É preciso ver como podemos substituir os pesticidas por agricultura de precisão, pelo uso de robótica na agricultura. Mas é preciso falar com os agricultores”, salientou Violette Geissen.

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