Em maio, o abril das nossas vidas

A insatisfação dos cidadãos europeus, no entanto, não se limita aos constrangimentos económicos, à falta de qualidade de vida e de igualdade de oportunidades.

Escrevo este meu texto “à beira-mágoa”, em vésperas do 49.º aniversário da revolução dos cravos, que nos resgatou, enquanto coletivo, de uma ditadura. Portugal, em 1974, era um país desigual, onde os mais pobres, as mulheres e as minorias étnicas eram tratados como cidadãos de segunda. Não tínhamos Serviço Nacional de Saúde nem um sistema de proteção social e a escola pública, para os mais pobres, terminava aos dez anos, com a quarta classe, sendo que muitos nem aí chegavam. O poder local democrático não existia e as eleições livres eram uma utopia. Entre vizinhos era preciso ter “tento na língua” não fosse alguém “bufar-nos” junto da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado).

Hoje temos um Serviço Nacional de Saúde, com fragilidades; a luta pela igualdade continua a ser necessária; a escola pública (agora para todos) está depauperada dos seus mais importantes recursos (proletarizados); o sistema de proteção social tem vindo a encolher, para alguns. Contudo, o que nós andámos para aqui chegar…

Importa lembrar que a viragem à matriz social-democrata vivida em Portugal emergiu em contraciclo, num período marcado por sucessivas crises do petróleo (a primeira em outubro de 1973) e consequentes crises económicas que, globalmente, têm contribuído para a reconfiguração do papel dos Estados. Paulatinamente, à boleia de teorias económicas como a do monetarismo e a do consumo, sustentadas pelo primado da liberdade individual, têm aumentado as desigualdades, que não pararam de crescer.

Hoje, o Estado-providência – que tirou a Europa da crise do pós-guerra – encolheu e anda à mercê dos mercados. O monetarismo conduziu-nos à crise financeira do subprime, em 2007. Os Estados foram interpelados a acudir a uma crise sistémica de consequências incalculáveis. Portugal endividou-se e a Europa insiste na política de estabilidade monetária que retira ao Estado a capacidade de melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. Acresce a este constrangimento o facto de Portugal ter desmantelado a sua frota pesqueira, ter sucumbido à deslocalização da indústria para o leste da Europa, como esta última o fez para a China, e de se sujeitar à negociação da Política Agrícola Comum. Neste ciclo vicioso, não produzimos riqueza e não temos riqueza para redistribuir.

A insatisfação dos cidadãos europeus, no entanto, não se limita aos constrangimentos económicos, à falta de qualidade de vida e de igualdade de oportunidades. Entre a indiferença, gerada num contexto de normalização das desigualdades, e a crise de representação, que foi crescendo num clima de individualismo capitalista, os demagogos e os populistas foram fazendo o seu caminho com um discurso que acentua clivagens entre “nós”, os bons, e “os outros”, as ameaças. E enquanto as manifestações polifónicas enchem as ruas, o fosso entre representados e representantes aumenta, conduzindo-nos para um perigoso destino, que espreita a leste.

Em Portugal, a crise de representação não se circunscreve só aos políticos. Esta crise é também fruto de uma democracia ainda jovem. 50 anos de democracia é um tempo curto. Para cumprirmos abril e sabermos representar os coletivos temos de aprender a fazê-lo nas escolas (alunos, pais, professores e pessoal de apoio educativo), nos bairros, no poder local democrático, nas regiões (para quando um regionalismo a sério?), no país. Se soubermos que não nos representamos a nós próprios, auscultando os que nos representam e prestando contas do que fazemos, talvez aprendamos a contribuir para a formação de uma renovada geração de políticos, que não nasce das árvores. Talvez façamos em maio o abril das nossas vidas. “É a hora!”, como escreveu Fernando Pessoa a encerrar a Mensagem. E o copo está ainda meio cheio, porque resistimos e o fascismo não passará!

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