Os que vão rir te saúdam, Chapitô

A trupe de comediantes de Lisboa esmiúça desta feita o mais conhecido dos imperadores romanos: Júlio César.

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Pedro Diogo, Susana Nunes e Jorge Cruz são exemplares na alegria desbragada que põem em cena DR

Plutarco, Shakespeare e mais outros já lhe contaram a vida com a gravidade merecida a uma figura histórica da sua dimensão. Agora é a vez da Companhia do Chapitô dedicar a sua 39.ª criação colectiva ao mais conhecido dos imperadores romanos. Em jeito de farsa, claro.

Medeia, Drácula, Édipo, Macbeth, Electra, Dr. Jekill e Mr. Hyde, Antígona, até A Tempestade, obra tão estimada de William Shakespeare, e mais uma mão-cheia de tragédias clássicas já passaram pelo filtro distorcido através do qual esta trupe de comediantes vê a história e a mitologia, e que lhe permite transformar em surpresa e riso o que antes era seriedade e respeitinho. Ora, como seria de esperar, é com a mais elevada falta de respeito que chegou a altura de Júlio César receber os seus tratos de polé nesta encenação de José C. Garcia e Cláudia Nóvoa, interpretada por Jorge Cruz, Pedro Diogo e Susana Nunes.

Só para recordar quem faltou naquele dia às aulas, o herói desta comédia requintada, que viveu entre 100 e 44 a.C., chegou através dos seus feitos militares a homem de Estado e, na habitual confusão de intriga, conspiração e traição que marcaram a vida política e social do Império Romano, fez (mais ou menos 60 anos antes do nascimento do Messias cristão) parte do Primeiro Triunvirato, com Crasso e Pompeu. A ascensão dos militares ao poder dividindo entre si as províncias do império, embora aprovada – a modos que à força, mas aprovada –, enfraqueceu o poder do Senado e, para muitos, os princípios da República. Digamos que o conquistador da Gália foi, como agora se diz, o mais proactivo. Isto é: aproveitou a guerra civil entretanto desencadeada, derrotou o exército de Pompeu, encostou Crasso às cordas e autoproclamou-se nem mais nem menos que Ditador Perpétuo de Roma. Não durou muito no cargo, pois a retaliação dos senadores que porfiavam pela restauração da República e dos aristocratas que não apreciavam tal acumulação de poder num só homem resultou primeiro numa conspiração e depois no assassinato colectivo, diz-se que maquinado por Bruto, seu discípulo dilecto.

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O recurso à pantomina e outras técnicas do teatro físico faz parte do ADN da Companhia do Chapitô DR

Passado este momento Wikipédia, interessa o que a companhia fez com o enredo. Este, como todos os anteriores, aliás, foi tratado com o talento de quem prefere expor inconsistências históricas e tomar a liberdade de não levar nada a sério, ou seja, como dizem os seus criadores, contribuindo, neste caso, para a “desconsagração” de César sem querer realmente saber se a morte do tirano foi merecida ou se o Ditador Perpétuo foi um herói vítima de conspiradores ansiosos por recuperar o poder. Por outras palavras, entre estas personagens não há flor que se cheire e na sua presença é preciso muito cuidado quando se expõem as costas – porque, é quase certo, há sempre um facalhão à espera de oportunidade. Portanto, não se espere neste espectáculo encontrar heróis e vilões. São todos, sem excepção, gente que aproveita as circunstâncias, ou, citando mais uma vez a companhia, “gente ardilosa que faz pela vida” sem olhar a métodos.

José C. Garcia e Cláudia Nóvoa não têm uma receita, mas seguem um método – que muito deve ao trabalho de John Mowat, durante anos encenador de serviço à Companhia do Chapitô –, criador de uma herança rica que os actuais encenadores prosseguem e desenvolvem. Mas voltemos ao método, que primeiro encontra o lado absurdo da narrativa, desenvolve-o em grande equilíbrio dramático e, através da pantomina e de outras técnicas do teatro físico, com um par de adereços adaptáveis a qualquer situação e uma iluminação adequada (Bruno Boaro e José C. Garcia), transforma o que noutras mãos foi e é um pastelão em delirante e absurda comédia. Mérito também da forma como os actores exploram as suas expressões faciais e corporais, usando tanto as suas limitações como as suas potencialidades e características, assim representando uma variedade de coreografia cómica. E, nesse aspecto, Jorge Cruz, Pedro Diogo e Susana Nunes são exemplares na alegria desbragada que põem em cena.

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