De costa a costa

A falta de cultura democrática no interior dos partidos está a matar o sistema democrático.

Um país, história de marinheiros que atravessaram mares e oceanos de costa a costa, povo corajoso que agora receia, teme, oscila e o simples navegar de um navio russo intimida, realça a fragilidade das nossas “naus” e dos bravos marinheiros com estórias, resta o medo de um povo rebelde, mas adormecido.

Na vida, “férias que a morte concede”, já se ouviu e viu de tudo, de políticos ao mais alto nível da governação, em ciclos fechados, preocupados, afirmarem sermos ingovernáveis, aos otimistas surfarem sem consciência o perigo das ondas. Recorrendo ao baú, a máxima, “se não se deixam governar, governai-vos vós”.

As férias que todos temos, no tempo recente assistimos à Revolução dos Cravos, ao florescer da democracia, aos inconformados sindicatos, à formação e definhar de partidos políticos, ao surgimento das juventudes partidárias, à morte de grandes líderes. Os portugueses com esperança concederam ainda recentemente uma maioria absoluta, que não gerou confiança nos portugueses, as sondagens já indiciam grande desilusão.

Nem a significativa queda dos salários reais nos últimos 20 anos, porque aumento digno desse nome só em 2009, conseguiu acordar o povo, o salário médio em Portugal é o salário mínimo em Espanha, a classe média sucumbe. Festa é festa, onde há festa há circo e malabarismo.

Nas juventudes partidárias, uns foram deputados, mais crescidos são governantes e os atuais são deputados e nos intervalos governam os partidos como se de uma associação de estudantes se tratasse e vale tudo para se manterem no poder. Sem a mínima consciência da responsabilidade constitucional dos partidos políticos — o alicerce do sistema democrático —, dia após dia, vão espetando pregos no “caixão”.

A falta de cultura democrática no interior dos partidos está a matar o sistema democrático. A radicalização à esquerda e à direita tem muito que ver com a falta de sentido de Estado dos partidos do arco do poder. Os partidos, na ânsia de crescimento, abertos, foram encharcados de militância faminta, com e sem empurrão, muitos a mudarem de camisola, pessoas sem convicção, tanto servem o partido A como B, ilustres ou não, lá vão chegando às autarquias, aos parlamentos e ao Governo para uns e desgoverno para outros.

O sentido de Estado exigiria ao seu serviço homens e mulheres com profissão, de convicção, experientes, competentes, conscienciosos, honestos, sem carreirismo. Assim teríamos governantes competentes. Mas, neste tempo, para se ser governante a exigência é outra, o importante é a fidelidade, pertencer ao núcleo de amigos, dominar o aparelho partidário, dominar os “sindicatos de voto” e praticar o culto do chefe, que garante, enquanto durar, o futuro de uns “tantos”.

Nos partidos muito se gosta do politicamente correto, um tema contemporâneo escolhido numa “universidade da Austrália” para se encontrar a melhor definição. No concurso, um dos seus alunos adiantou a seguinte definição: “Politicamente correto é uma doutrina, sustentada por uma minoria iludida e sem lógica, que foi rapidamente promovida pelos meios de comunicação e que sustenta a ideia de que é inteiramente possível pegar em trampa pelo lado limpo.”

Que saudades de Mário Soares, Sampaio, Guterres... Refiro os meus. Recordo o combate político entre Jorge Sampaio e Guterres. Um foi Presidente e o outro primeiro-ministro. Nessa luta interna, João Cravinho, Vera Jardim, Ferro Rodrigues, Alberto Martins, António Costa, que apoiaram Sampaio, todos foram ministros, mas desta boa lição de Guterres alguns nada ou pouco aprenderam, apesar de tudo saberem. Os valores da solidariedade, da tolerância, da liberdade, da igualdade cedem à intolerância; em vez de solidariedade, expande-se o assistencialismo e o amiguismo.

Um partido, para ser forte, exige robusta oposição interna. Mas aquele que prescinde dos seus melhores, sem tolerância, não pode ter um futuro risonho. Um Governo de amigos será sempre um mau Governo, um fraco Governo. O país, de norte a sul, de costa a costa, assim vai alimentando quem não deveria: o Chega! Esqueceram-se de Seguro, Assis, Alberto Martins e tantos outros. O país precisa de voz, chega de silêncio.

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