Habitação: o que fazer. Dois exemplos na zona ocidental de Lisboa

É urgente que o Estado central e as autarquias se assumam como algo mais do que reguladores ou simples observadores dos mercados de solos e actividades sobre eles realizadas.

A crise da habitação tem sido, e justamente, alvo de intenso escrutínio mediático. Enquanto escrevo, leio sobre o protesto do presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), na rua, contra os incentivos para transformar imóveis para alojamento local (AL) em casas para o mercado de habitação permanente. Não tenho dúvidas que o AL não faz parte da solução para a crise da habitação. E é perverso sugerir que pode ser a solução para os ordenados que “não chegam ao fim do mês” (palavras do presidente da CML). Seguramente mais pathos que logos, o argumento do presidente da CML aponta a direcção correcta para colocar o problema da habitação em Portugal: um problema de desigualdade económica e social.

Em cidades como Lisboa, os rendimentos da grande maioria das famílias não são suficientes para alugar ou comprar habitação condigna, como pode ser comprovado cruzando os dados disponíveis aqui com os dados do rendimento médio das famílias (Pordata, https://www.pordata.pt/portugal/rendimento+medio+disponivel+das+familias-2098).

Em Lisboa existem mais de 25.000 fogos desocupados e fora do mercado e cerca de 21.000 no mercado (dados do INE, 2021), mas, frequentemente, a valores acima da média da unidade estatística correspondente – proibitivos, portanto, para a generalidade dos habitantes de Lisboa. Há casas que poderiam ser habitadas, mas faltam casas que possam ser compradas/arrendadas por quem delas precisa. Este é um problema que não é resolvido por qualquer “mão invisível” do mercado ou com soluções de mais construção privada, estimulada pelo Estado ou autarquias. Os interesses do sector imobiliário conduzem a que os proprietários orientem a venda ou arrendamento para os segmentos de luxo ou da classe média alta.

Os fundos de investimento internacionais são particularmente nocivos, uma vez que se dedicam à disponibilização de habitação como um activo a ser utilizado para obter lucro via especulação financeira, em suma, financeirização da habitação. A acção desregulada do sector imobiliário, em particular dos fundos de investimento, do turismo e da banca são claramente antagónicos aos interesses das famílias, da coesão territorial e da qualidade de vida, especialmente nas grandes cidades.

O que Lisboa precisa é de habitação pública e de iniciativas para estimular a habitação a custos controlados e rendas acessíveis, condição necessária para “… tornar a cidade de Lisboa cada vez mais atrativa para residir, com preços acessíveis para os vários escalões de rendimento familiar e consequente rejuvenescimento de população”, tal como é reconhecido no Regulamento Municipal do Direito à Habitação.

Em linha com este desígnio, no dia 29 de Março, a CML aprovou uma moção do PCP, apoiada por toda a oposição, que visa intervir no mercado de arrendamento e aumentar a oferta pública de habitação. Sendo elevada a procura de habitação municipal (veja-se a Carta Municipal de Habitação de Lisboa), é fundamental que o executivo camarário acate esta moção e se mobilize para apoiar iniciativas de habitação pública. Na zona ocidental de Lisboa, ocorrem-me duas novas oportunidades para o fazer: a Operação de Loteamento do Alto do Restelo; e a Unidade de Execução da Ajuda.

No caso do Alto do Restelo, a intervenção da CML é simples – basta executar a operação. Os cidadãos foram ouvidos e o projecto foi largamente melhorado para atender às preocupações legítimas manifestadas em duas consultas públicas. Belém é uma freguesia com um índice de envelhecimento elevado, com cerca de 40% da população residente na faixa etária “mais de 65 anos”. É ainda uma freguesia em que a taxa de alojamentos arrendados (31,3%) é menor do que a média do município de Lisboa (aproximadamente 38%). Os valores de mercado para o arrendamento em Belém são de cerca de 19 euros/m2 – a um apartamento de 70 m2 corresponderá um esforço de mais de 43% do rendimento disponível de um casal (dados Pordata). A intervenção aumenta a oferta de habitação para arrendamento a preços reduzidos, promove o equilíbrio entre o arrendamento e a habitação própria e permite resolver os desequilíbrios sociais e demográficos de Belém.

Evidentemente, necessita de um sistema denso e funcional de transportes públicos, incluindo o aumento da frequência das carreiras existentes, a criação de novos circuitos locais e a concretização da Linha Intermodal Sustentável. Tudo isto está previsto na proposta da operação de loteamento – é difícil de entender porque não avança.

No caso da Unidade de Execução da Ajuda (UEA), trata-se de condicionar os promotores privados a modificar uma operação de loteamento que é, já aqui o escrevi, manifestamente danosa para a coesão social e territorial do Bairro da Ajuda. Tem como elemento central a designada Unidade de Construção 1 (UC1), em que a valorização do espaço se baseia na segregação espacial e social e na recusa da articulação com a dinâmica do bairro.

Para uma intervenção que visa a “fixação de residentes” e a “dinamiza[ção] [d]a vivência urbana local”, não se compreende que a expectativa seja aumentar o preço do solo (venda) para 7000 euros/m2, em unidades estatísticas que, actualmente, exibem preços de 2500 euros/m2. Se a proposta urbana era errada, a proposta de arquitectura do promotor privado, que se vai agora conhecendo, revela um absoluto desrespeito pelas características morfotipológicas da zona. Este executivo camarário orgulha-se de saber ouvir os cidadãos. Tem que ouvir os cidadãos da Ajuda nesta matéria e negociar com os promotores privado e público as propostas formuladas na reunião de câmara de 29 de Março e disponíveis aqui.

Com ou sem pacote Mais Habitação, é urgente que o Estado central e as autarquias se assumam como mais que reguladores ou simples observadores dos mercados de solos e actividades sobre eles realizadas. É urgente que realizem políticas de renovação urbana e construção nova, disponibilizando fogos recuperados ou renovados para programas de custos controlados e de renda acessível e aumentando a parcela de habitação pública. Há quadro legal para isso, haja vontade política.

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