O direito à Ajuda

Em primeiro lugar, há que objectar que a consolidação do tecido urbano não se decreta em planos urbanísticos. É o que resulta da experiência do espaço, edificado ou não, das práticas estabelecidas de quem vive a cidade. O tecido urbano precisa de pessoas. E começam a faltar pessoas à Ajuda.

A Unidade de Execução da Ajuda (UEA) delimita uma área para intervenção urbanística e futuro loteamento. A delimitação é da responsabilidade da Câmara Municipal de Lisboa, a pedido dos proprietários em 2015, o fundo imobiliário Maxirent e o Estado, por intermédio da Direcção-Geral do Tesouro e das Finanças (DGTF). As parcelas envolvidas, que se encontram a sul do Palácio Nacional da Ajuda, foram parte integrante dos terrenos do Palácio, nelas existindo vários edifícios coevos. Alguns estão em ruínas (por exemplo, o edifício de apoio à Quinta das Damas), outros conservados pelos seus diversos locatários.

Do abandono desta zona queixava-se o conservador do palácio Manuel Zagalo em 1957, notando que a área que circunda o palácio teria sido votada ao abandono “desde sempre”. Queixa-se também a generalidade da população da Ajuda, que, há muito, reclama a reabilitação daquele espaço, abandonado, na verdade, desde a fuga da corte para o Brasil em 1807, ainda o palácio estava em construção. Abandonado, sim, mas não por falta de enquadramento em planos urbanísticos ou falta de ideário urbano. A UEA está enquadrada nas Zonas Especiais de Protecção (ZEP) do Palácio da Ajuda e do Palácio de Belém. Foi incluída no Plano de Salvaguarda e Valorização de Ajuda-Belém, coordenado pelo Eng. Costa Lobo, a partir de 1988, e objecto de medidas preventivas que sujeitavam quaisquer intervenções, urbanísticas ou aquitectónicas, a autorização prévia do IPPC, actual Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC). O PDM de Lisboa, e as suas sucessivas actualizações desde 1994, consagra a parcela sul da actual UEA, adjacente à Rua Bica do Marquês, ao uso residencial. Para concretizar esse uso são iniciados, no final dos anos 1980, planos de pormenor, nomeadamente para a envolvente do Palácio da Ajuda e para a zona da Memória. Neste contexto, o plano de pormenor para a área envolvente do Palácio da Ajuda, da autoria do arquitecto Gonçalo Byrne, terminado em 1992, compreende o redesenho da Alameda dos Pinheiros, um jardim em patamares a sul desta, simétrico ao Jardim Botânico da Ajuda, e, para a zona consagrada a habitação, edifícios organizados em bandas ou quarteirões com volumetrias equivalentes aos já existentes a sul da Rua Bica do Marquês. Este plano não chegou a ser publicado em Diário da República. Em 2005, a Câmara Municipal de Lisboa anuncia que o plano de pormenor de 992 foi revisto e actualizado, mas, de novo, sem efeitos práticos. Em Outubro de 2018, o Plano de Pormenor de Salvaguarda da Área Envolvente do Palácio da Ajuda é formalmente declarado caduco.

Sem plano de pormenor ou de urbanização formalmente válido, mas com décadas de reflexão e vários trabalhos de planeamento a várias escalas, inicia-se, a 2 de Março de 2021, o período de discussão pública da UEA, nomeadamente a sua delimitação e proposta de intervenção urbana, da autoria do arquitecto Gonçalo Byrne.

À margem destes planos, dá-se, em 1993, um evento nebuloso: o Estado cede três das parcelas da actual UEA à Sociedade Instaladora dos Mercados Abastecedores (SIMAB), a título constituição do capital inicial. Em 2000, a SIMAB, vende estas parcelas à empresa que gere o fundo investimento Maxirent por, aproximadamente, 115€/m2. O IPPAR (sucessor do IPPC e predecessor da actual DGPC) é chamado a pronunciar-se em nome do Estado e opta por não exercer o direito de preferência na transacção destas parcelas. O Estado, por intermédio do IPPAR, defendeu a sua opção argumentando não ter orçamento para adquirir as parcelas e não saber o que fazer com elas, uma vez que não teria vocação para promotor imobiliário. Por sua vez, o fundo Maxirent elogiou a postura do Estado, defendeu que os valores de compra não seriam anormalmente baixos e, já em 2021, desfaz-se de, pelo menos, uma das parcelas da UEA, por cerca de 880€/m2 – 7,5 vezes o valor de aquisição. Num contexto de inflação muito baixa, esta sequência de transacções tem de suscitar uma reflexão sobre a actuação do Estado. Pode ser verdade que as leis tenham sido cumpridas, mas ficou a imagem de um Estado sem orçamento, impotente ou desmotivado para intervir num negócio que claramente não acautelou o interesse público, dado o potencial de valorização daquelas parcelas. Ver o Estado auto-reduzido a um mero zelador da regularidade formal da transacção é extremamente desalentador para os cidadãos, que, desse Estado, esperavam a salvaguarda dos seus interesses.

Em 2021, o Estado, agora por intermédio da DGTF, e redescobrindo a vocação de promotor imobiliário que havia perdido em 2000, acompanha os promotores privados na proposta urbana para UEA. Esta é descrita, nos termos de referência, como visando a “reconversão urbanística e funcional de áreas expectantes e a reestruturação de malha urbana degradada”. Em termos prosaicos, trata-se de demolir os edifícios actualmente existentes, excepto o Pátio do Bonfim, do proprietário Estado, e de concretizar, com novas construções, o uso residencial previsto no PDM nas parcelas sul da UEA. A proposta destaca que há cedência gratuita de áreas destinadas a espaços verdes públicos. Quanto a este ponto, há que salientar que não poderia deixar de ser assim – os espaços verdes propostos correspondem à área verde consolidada para “recreio e produção” consagrada no PDM de Lisboa, e de acordo com a ZEP do Palácio da Ajuda.

Lê-se ainda, no sumário, que a proposta promoverá “a colmatação e a consolidação do tecido urbano” e procurará garantir “a fixação de residentes e contribuir para dinamizar a vivência urbana local”. Nesta fase, não estão em discussão operações concretas de loteamento. Mas, considerando os antecedentes e a descrição da “solução” urbana desta UEA, há razões para temer que essas operações venham a colocar mais problemas à Ajuda, e a Lisboa, que aqueles que resolvem.

Em primeiro lugar, há que objectar que a consolidação do tecido urbano não se decreta em planos urbanísticos. É o que resulta da experiência do espaço, edificado ou não, das práticas estabelecidas de quem vive a cidade. O desenho urbano e a morfologia dos edifícios constituem apenas o estrato físico sobre o qual se desenvolvem estratos económicos e sociais, feitos de interacções, conexões, afecto ou memórias. Em suma, o tecido urbano precisa de pessoas. E começam a faltar pessoas à Ajuda. O número de habitantes da freguesia da Ajuda aumentou na primeira metade do século XX, acompanhando o desenvolvimento da pequena indústria e serviços, em especial devido à construção de iniciativa pública, promovida pela I República e o Estado Novo. Mas a Ajuda perde habitantes há 40 anos. Perdeu 42% da sua população entre 1981 e 2011, e 30% entre 1991 e 2011. E não se conhece ainda o efeito da transformação de muitas habitações em alojamento local nos últimos seis anos.

Não é fácil inverter esta tendência se, após a crise de 2008, e assistindo-se a uma quebra dos custos de mão-de-obra, a um reduzido aumento dos valores dos materiais de construção para habitação nova e para reabilitação, o preço do solo aumenta 152% na Ajuda, mais do que os 135% da média de Lisboa (entre 2015 e 2021). Esse aumento, materialmente injustificado, não é difícil de entender num quadro de financeirização da habitação e especulação imobiliária. A Ajuda é apelativa, é uma encosta virada ao Sul e ao rio, próxima da zona monumental de Belém. É apelativa para a indústria do turismo e para o urbanismo dos promotores. É a transformação de valor de uso em valor de troca, mercantilizando a memória do lugar, que permite que se chegue à situação actual, em que T1 remodelados em artérias antigas da Ajuda se vendem a 5000€/m2.

Irá, então, o loteamento das parcelas da UEA contribuir para inverter esta trajectória e contribuir para a “fixação de residentes” e para “dinamizar a vivência urbana local"? Os antecedentes não são favoráveis. Recorde-se que, em 2001-2002, a proposta do fundo Maxirent para este local consistia num condomínio fechado de luxo. Observe-se também que os condomínios murados da Calçada da Ajuda se vendem a mais de 6000€/m2. Segundo o promotor, mais de 70% estão vendidos, mas não é evidente o benefício para comércio local ou para a dinâmica da vida urbana. Onde estão esses novos habitantes? Como dizem os grupos locais de cidadãos que se vão organizando, “os condomínios não vão às compras na Ajuda”. Ou porque os seus residentes estão desfasados da vida do lugar ou porque, simplesmente, não há residentes, apenas investimentos.

O modelo urbano proposto na UEA também contribui para a suspeita de que não haverá qualquer dinamização da vivência urbana local. Na planta proposta observa-se que a designada Unidade de Construção 1 (UC1) toma a forma de um polígono que encerra uma área interior vasta, a transformar em espaço verde privado. O arquitecto Gonçalo Byrne insiste que a opção pelo polígono UC1, a que chama quarteirão fechado, não é mais do que a continuação de uma tradição lisboeta, pombalina, em particular. Mas é fácil verificar que, nos quarteirões fechados da Ajuda, incluindo os de tipologia pombalina, o espaço interior é, em proporção do espaço total, muito menor do que o previsto na proposta para o polígono fechado UC1. Este polígono é reminiscente do Forte do Conde de Lippe, não dos quarteirões pombalinos da Ajuda. Concretiza a segregação de um espaço da cidade para fruição privada de um espaço verde, quando, do lado de fora dos edifícios que o confinam, existirá um espaço verde de 1,5ha – público. Intui-se que, para o promotor, é a lógica do condomínio privado, a segregação como privilégio e a recusa da articulação com a dinâmica social exterior que valorizam este espaço.

Note-se que o preço médio do solo na unidade estatística que engloba a Rua Bica do Marquês (que confina, a sul, com a UEA) é, actualmente, de cerca 2700€/m2. Se, nas operações loteamento da UEA, o solo vier a ser vendido a mais de 6000€/m2, haverá um forte desequilíbrio nos preços do solo e nos valores do arrendamento. A curto prazo, assistir-se-á à centrifugação, para fora de Lisboa, do actual estrato socioeconómico da Ajuda. E, atendendo à experiência recente da Calçada da Ajuda, este estrato pode nem ser substituído por outro mais abastado – simplesmente não virão pessoas, virão investidores que realizarão as suas trocas ao sabor das flutuações dos preços de mercado sem verdadeiramente habitar o espaço.

É expectável, portanto, que, sem a intervenção da CML ou do Estado no sentido de garantir habitação a custos controlados ou de renda acessível, as operações de loteamento da UEA não venham a consolidar o tecido urbano mas sim a rasgar definitivamente o tecido existente, já bastante debilitado; que não venham a fixar residentes ou dinamizar a vivência urbana local mas sim a consolidar a Ajuda como um investimento e não como um bairro de uma cidade viva.

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