Não há água para tudo no Alqueva: consumo para regadio está no limite

A escassez de água aliada aos projectos que aumentam a procura no Alentejo, Algarve e Espanha realçam a primeira consequência: o plano de expansão do regadio sofreu uma redução.

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Olival no Alqueva Nuno Ferreira Santos

As “restrições ambientais” e a subida dos custos de construção e equipamentos puseram um travão ao crescimento do regadio na região do Alqueva. As mesmas razões empurraram também o projecto no calendário: a data para a conclusão do projecto prevista para 2023 foi adiada para 2025.

Durante um colóquio realizado na Ovibeja, em Abril de 2022, o presidente da Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas de Alqueva (EDIA), José Pedro Salema, já tinha deixado o aviso: “Temos de repensar a expansão do regadio.” Significa isto repensar o modelo aprovado pelo Governo em 2019 que previa a construção de mais 50 mil hectares de novos blocos de rega na área do Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva (EFMA).

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Decorrido um ano, o Anuário Agrícola de Alqueva (AAA) publicado pela EDIA em Março passado, vem confirmar que o plano de expansão do regadio sofreu uma redução. Em vez da instalação dos 50 mil hectares programados no projecto inicial, a EDIA adianta que as infra estruturas a implantar podem vir a abranger apenas uma área com “cerca de 35 mil hectares”.

Neste momento, do plano de expansão do regadio em Alqueva [que era para estar concluído em 2023], estão concluídos os blocos de rega de Évora, Viana do Alentejo e Cuba/Odivelas para beneficiar, no seu conjunto, uma área agrícola com cerca de 10 mil hectares. A data para a conclusão do projecto foi adiada para 2025.

Salema explica porque foi amputada em 15 mil hectares a área de regadio. Além da “subida dos custos de construção e de equipamentos”, desde que o plano de expansão do regadio foi projectado (em 2017), é preciso “acautelar algumas das áreas inicialmente previstas na expansão do regadio, dadas as restrições ambientais que foram levantadas pela APA (Agência Portuguesa do Ambiente)”.

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Imagem de drone da barragem do Pisao da EDIA, Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva, S.A. Nuno Ferreira Santos

A seca a travar a expansão

Este travão ao crescimento do regadio vem comprovar que a gestão dos recursos hídricos no Sul do país está a pôr um problema de difícil superação: não há água para tudo. As solicitações, sobretudo na agricultura regada, sucedem-se à medida que as alterações climáticas intensificam os episódios de seca, com as temperaturas a subir e a precipitação atmosférica a surgir de forma muito irregular e em muito menor quantidade.

Um estudo efectuado pela Associação de Defesa do Património de Mértola para a elaboração de um modelo de reabilitação de ecossistemas nas zonas semiáridas do Sudeste de Portugal (REA Alentejo) concluiu que ao longo dos últimos 80 anos o valor médio de precipitação nesta região “caiu para metade”. Na década de 40 o valor médio anual de precipitação foi de 755,4 milímetros. Em 2020 diminuiu para 474,2 milímetros.

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Associado à acentuada quebra nos índices da precipitação observa-se um aumento crescente e descontrolado no volume de água consumido sobretudo na agricultura. O Anuário Agrícola de Alqueva comprova-o. Em 2022, os débitos fornecidos ao regadio, indústria, turismo e rede pública de abastecimento atingiram os 516,5 milhões de metros cúbicos. Nunca foi consumida tanta água nas várias utilizações que Alqueva suporta.

Em declarações ao PÚBLICO, o presidente da EDIA recorda que a concessão do Estado português autoriza a extracção anual de 590 milhões de metros cúbicos para rega e de 30 milhões a fornecer ao abastecimento público, industrial e turístico, a partir do sistema Alqueva-Pedrógão. Reagindo aos apelos dos que preconizam um reforço deste volume, Salema constata que “não é possível obter mais água para além daquela que a natureza disponibiliza” e reforçar as captações põe em causa a reserva estratégica de água.

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Tubos do sistema de rega gota a gota usado na região para várias culturas Nuno Ferreira Santos

Olival e amendoal em velocidade de cruzeiro

No Relatório de caracterização dos clientes da EDIA 2022 são apontadas outras variáveis que realçam o acentuado aumento dos recursos hídricos em tempo de escassez: as transferências de água em 2022 para os perímetros de rega confinantes (assim designados por não integrarem o EFMA) sofreram um aumento de 230% de água em relação a 2021 que está relacionado com o “nível baixo a que se encontravam as albufeiras de Campilhas e Alto Sado, Roxo, Vigia e Odivelas”.

Outros parâmetros, como o aumento da área inscrita, a entrada em velocidade de cruzeiro dos novos olivais e amendoais e o desfasamento entre os períodos de precipitação e da fase das culturas são referenciados pela EDIA para justificar os elevados consumos de água em Alqueva.

A Associação de Proprietários e Beneficiários de Alqueva (APBA), numa exposição enviada à Comissão Parlamentar de Agricultura e Pescas, expressa as suas preocupações com os riscos resultantes da diminuição das reservas de água num contexto em que se assiste ao “aparecimento de mais regantes precários que não respeitaram, nem respeitam” as imposições do Despacho n.º 17/2019 de 26 de Julho, do Ministério da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural.

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Amendoeiras em flor Nuno Ferreira Santos

Instabilidade e insegurança no futuro

O documento foi elaborado para travar o “elevado aumento da área ocupada com culturas permanentes, regadas a título precário”, factor que introduziu “instabilidade e insegurança face ao futuro”. Deixaram, assim, de ser concedidas autorizações para o fornecimento de água, a título precário, para culturas permanentes (olival, amendoal, frutícolas e vinha) e os seus proponentes foram “excluídos dos critérios de admissibilidade aos concursos das medidas de apoio ao investimento”.

A área já ocupada por agricultores precários na periferia dos blocos de rega do EFMA, para além dos 30 mil hectares já ocupados, poderá ter aumentando em mais de 10 mil hectares e não pára de crescer. “As autoridades nada fazem para impedir a sua implantação no terreno”, denuncia a APBA.

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A expansão da área de rega do EFMA em mais 35 mil hectares veio “criar problemas em algumas condutas do sistema de transporte de água por estarem subdimensionadas face a todas estas solicitações”, alerta a APBA, que tece críticas à pretensão de captar 60 hectómetros cúbicos/ano, no rio Guadiana junto ao Pomarão, para satisfazer necessidades da região do Algarve.

Acresce a pretensão de Espanha de continuar a captar [um procedimento que as autoridades portuguesas consideram ilegal], através do sistema de Boca Chança, instalado junto à linha de fronteira na confluência do rio Chança com o Guadiana, também no Pomarão, o mesmo volume de água para satisfazer as necessidades do regadio e consumo humano na região de Huelva.

As solicitações estendem-se ao abastecimento de novos blocos de rega fora da área de influência do EFMA. O Governo já aprovou o projecto que prevê o fornecimento de água à barragem de Monte da Rocha, que actualmente apresenta a mais baixa reserva hídrica a nível nacional (cerca de 10% da sua capacidade máxima).

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Herdade pertencente à EDIA (Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva) Francisco Romao Pereira/Arquivo

Os reforços e novas regras para rega

Além do reforço dos débitos destinados ao consumo humano nos concelhos de Almodôvar, Castro Verde, Odemira, Ourique e Mértola, o transvase de Alqueva para a Monte da Rocha vai permitir irrigar 2300 hectares nos concelhos de Aljustrel e Ourique.

O problema, pelo menos para os olivicultores, é que as solicitações para utilização de água do Alqueva são cada vez maiores. “É óbvio que não há água para todos”, advertiu Gonçalo Almeida Simões, director-geral da Associação de Olivicultores e Lagares de Portugal (Olivum), em recente audição da Comissão Parlamentar de Agricultura.

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E lembrou: “O Alqueva foi dimensionado para regar um perímetro [de 120 mil hectares], mas estamos a ver que muito em breve corremos o risco de passar a ter um problema muito grave. A situação que se vive é muito preocupante. E, se nada for feito, para racionalizar o uso da reserva de água de Alqueva “podemos estar a levar o empreendimento ao colapso, vítima do seu próprio sucesso, acrescenta a APBA.

Com a adesão ao regadio em Alqueva actualmente “muito perto dos 100%” e considerando as necessidades de abastecimento de outras valências (industrial, turismo, consumo humano), bem como o abastecimento a confinantes, “perspectiva-se que o limite de concessão 620hm3 a retirar do sistema Alqueva-Pedrógão esteja prestes a ser alcançado”, salienta a EDIA.

Para gerir a escassez de recursos hídricos, a empresa já divulgou o seu “caderno de encargos”. Nas campanhas de rega de 2023 apenas será fornecida água no volume adequado aos blocos de rega confinantes (Roxo, Odivelas, Monte Novo, Vigia e Vale de Gaio), tendo em conta as disponibilidades nas suas albufeiras e na albufeira de Alqueva.

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Olival na região do Alqueva Nuno Ferreira Santos

Os débitos serão distribuídos “em função da cultura e da área a candidatar para rega”. Esta opção procura, ao mesmo tempo, evitar abusos que a empresa tem detectado na utilização da água, salientou Pedro Salema ao PÚBLICO, admitindo ainda a possibilidade de poder haver restrições no acesso à água para rega, se a escassez de recursos hídricos persistir.

Numa situação-limite, deixará de haver fornecimento de água para as culturas anuais (por exemplo, hortícolas, milho, etc.) e as culturas permanentes (olival, amendoal, outras frutícolas e vinha) receberão débitos “apenas para a sua sobrevivência”, alerta o presidente da EDIA.

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