A importância dos rituais

Podem ser muitas e variadas as oportunidades de partilhar momentos especiais que conferem às memórias das crianças uma aura mítica que as acompanha ao longo da vida.

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"O desinvestimento na ritualização da passagem do tempo tem consequências com um impacto bem maior do que poderíamos pensar" Eren Li/pexels

Vivemos sob a égide do novo. Estamos apostados em proporcionar aos nossos filhos programas diferentes que lhes proporcionem vivências enriquecedoras e abram novos horizontes. Nessa demanda, apostamos na descoberta de novos locais, sempre no afã de alargar o leque de paisagens, de experiências e de conhecimentos. Na procura da eterna novidade, acabamos por empoderar a vivência do aqui e do agora, consumindo programas, destinos e relações, numa lógica de check list, constantemente prontos para colocar um “V” na listagem de objetivos.

Esta demanda do novo não é, na essência, negativa. Pelo contrário, até tem muitos aspetos positivos. O problema surge quando esse afã pela novidade é tal que tendemos a desvalorizar aquilo que se repete e a desinvestir nos rituais que se perpetuam no tempo, atribuindo menor importância à sua laboriosa preparação. Tal como refere o filósofo Byung-Chul Han, “na busca de novos estímulos, excitações e experiências, perdemos a capacidade de repetição”, criando intervalos vazios, que “só podem ser transpostos através do drástico e do excitante”.

Este desinvestimento na ritualização da passagem do tempo tem consequências com um impacto bem maior do que poderíamos pensar. É que não são apenas os eventos que perdem a importância. Essa é apenas a ponta do iceberg. Num sentido mais profundo e disruptivo, é o próprio tempo que se desregula, parecendo que se torna mais acelerado e fragmentado. Quem não conhece a sensação de que o tempo voa, se desarticula e torna imprevisível?

Mas não foi certamente o tempo que se alterou: foi a nossa vivência desse mesmo tempo. Como um legado para as gerações vindouras, é precisamente essa a perspetiva do tempo que transmitimos aos nossos filhos: acelerada, fragmentada e descontínua. Esta vivência gera, em última instância, uma noção de desorientação, desregulação e fugacidade na passagem do tempo.

Para inverter esta situação, há que (re)investir na ritualização da passagem do tempo, conferindo sentido às festividades que marcam e densificam essa passagem ao longo do ano. Essa ritualização concretiza-se através de eventos cuidadosamente preparados, afetiva e esteticamente investidos, em momentos marcantes do calendário anual, tanto do calendário coletivo como do específico de cada família.

Para preparar estes rituais, é necessário dar-nos ao luxo de “perder” tempo, resistindo à tentação de adquirir eventos do tipo "chave na mão", que se consomem demasiado rapidamente. É que aquilo que densifica os rituais é precisamente o investimento, o envolvimento e o significado que lhes atribuímos. Só desta forma podemos transformá-los em parte da integrante da nossa biografia pessoal e história familiar.

Podemos estar a falar de uma caça aos ovos da Páscoa no quintal dos avós. Ou de uma mesa para a ceia de Natal decorada com uns castiçais especialmente bonitos. De uma festa de aniversário animada com uma gincana inventada em família. De um pedido de “Pão por Deus” aos vizinhos do prédio. Da participação numa festividade na aldeia onde se passam as férias de Verão… Podem ser muitas e variadas as oportunidades de partilhar momentos especiais que conferem às memórias das crianças uma aura mítica que as acompanha ao longo da vida.

Mas, para que tal aconteça, é imprescindível a repetição destes mesmos rituais, em momentos previsíveis, ano após ano. É precisamente através da repetição regular desses eventos encantatórios que se ritualiza a passagem do tempo da infância, aguçando a expetativa, a curiosidade, o maravilhamento e até a benigna impaciência do tempo de espera que antecede a chegada do tão ansiado momento.

Esta expetativa, a cada ano repetida, funciona como um intervalo de tempo, como um limiar que suspende e organiza a sequência temporal, induzindo as tão necessárias qualidades da paciência e da capacidade de espera, matizadas pela aura do ainda longínquo que, lentamente, se torna cada dia mais próximo até se tornar, finalmente, real! Parece que vale a pena esperar e que o tempo de espera confere encanto e disponibilidade para a vivência do ritual. Na verdade, a própria espera prepara e faz parte do ritual.

Os intervalos de tempo, que medeiam o tempo de espera, não funcionam somente como retardadores. Têm como missão ordenar e articular, não apenas a perceção do tempo, como a própria vida. Numa perspetiva mais abrangente, proporcionam um sentido de estabilidade e de continuidade, conferindo um ritmo ordenador à sequência temporal, alicerçado na permanência, na duração, na previsibilidade e na confiabilidade.

Esta dimensão é de tal modo impactante que, segundo Chul Han, “a inexistência de intervalos de tempo dá lugar a uma sobreposição ou caos de acontecimentos desarticulados, fragmentados, descontínuos, fugazes e intermitentes, que geram uma perceção de aceleração temporal e de desorientação na passagem do tempo”. De acordo com a sua visão, “a premência imediatista do aqui e agora gera uma aceleração do tempo que torna impossível a demora e despoja os espaços intermédios do seu significado regulador”.

Os rituais ciclicamente repetidos são significativos para a construção e a densificação de uma narrativa de vida que reforça o sentido de pertença a uma comunidade de ressonância capaz de uma harmonia e de um ritmo comum. Esse sentido de pertença estreita os laços, em primeiro lugar, com a nossa família, contribuindo para criar aquilo que se poderá denominar como património imaterial da infância.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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