“A Igreja é conservadora e progressista e essa tensão há-de manter-se sempre”

Miguel Almeida, provincial dos Jesuítas, apela a que trabalho iniciado pela comissão independente sobre abusos sexuais não se perca.

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O padre Miguel Almeida conta que a Companhia de Jesus tem conhecimento de 12 casos de abuso desde a década de 50 MATILDE FIESCHI

O provincial dos jesuítas em Portugal, Miguel Almeida, defende a subida da idade mínima para a ordenação de padres, um papel mais visível da mulher na Igreja e quer salvar o processo e evitar a descredibilização do trabalho da comissão independente sobre abusos sexuais.

Em entrevista ao programa do PÚBLICO-Renascença Hora da Verdade, o padre jesuíta diz ainda que o cristianismo está “meio moribundo” na Europa e pede que os católicos não tenham medo de uma Igreja de diálogo. Pode ouvir a entrevista na íntegra esta quarta-feira às 23 na Renascença.

A Igreja em Portugal está a passar por uma das mais difíceis e duras crises das últimas décadas. O que é preciso mudar rapidamente para inverter esta situação? E como é que a Igreja pode, enfim, recuperar a autoridade moral que está a perder na opinião pública?
É uma grande crise, mas acho que é uma crise própria de uma conversão e de um crescimento. Esta crise é provocada, seja pela quantidade de abusos que se percebeu que há na Igreja em Portugal, seja pela dificuldade que se está a sentir no modo como lidar com as vítimas, com os abusadores. Todo este tema traz para cima da mesa uma Igreja que para muitos parecia que não existia.

Vem ao de cima a grande fragilidade da Igreja e a fragilidade também do modo como lidamos com estas situações. E, de facto, há uma série de coisas que têm de mudar. Tem de mudar a comunicação da Igreja. A Igreja ainda estava habituada a ter uma palavra, talvez a única ou última palavra credível e hoje não é assim. Há aqui duas ou três coisas que a Igreja pode aprender com esta crise.

Quais são essas coisas?
Uma diria é aceitar, acolher, agradecer viver num mundo plural, em que a Igreja não é detentora da última palavra, mas que tem de aprender a dialogar com outras vozes. E a Igreja hoje tem uma voz que continua a propor valores e sentido de vida para muita gente. Mas, de facto, há muita gente hoje que não se revê nos princípios da Igreja, nos valores da Igreja e, portanto, há uma sociedade plural, secular, com que podemos aprender e oferecer muito e aprender a dialogar verdadeiramente com esta sociedade, não de cima para baixo, não do centro para a periferia, mas, como diz o Papa, começar a trazer as vozes das periferias.

Sabermos situar-nos no mundo actual como ele é e não como porventura desejaríamos que fosse. A Igreja não estava habituada a ser escrutinada como está a ser. O que o Papa está agora a tentar fazer com o sínodo é uma autêntica reforma profunda do modo de ser Igreja. Desde o Concílio Vaticano II, é talvez a reforma mais profunda que possa ter havido na Igreja.

A hierarquia da Igreja portuguesa vive deslocada da realidade em que se insere?
Não. Diria que houve uma comunicação que correu verdadeiramente mal, na conferência de imprensa [da CEP sobre o relatório da comissão independente]. Não tenho dúvidas de que todos os bispos queiram virar a página e resolver esta situação e implementar boas práticas de maneira a que não haja mais abusos e que este flagelo termine. Penso que a comissão independente poderia também ter vindo ajudar ao diálogo.

Gerou-se na opinião pública a ideia de que havia 100 padres no activo que eram abusadores. Não sei se isto foi exactamente dito pela comissão ou não. Não é assim. Dos 98 nomes que aparecem, 36 estão mortos, 22 não estão nomeados ou são desconhecidos, 14 já tiveram um processo civil e canónico, 14 estão neste momento suspensos e nove permanecem no activo.

Gerou-se uma expectativa de 100 nomes e agora vão 100 padres para o exílio e, de facto, afinal, não era assim. Devia restabelecer-se de novo o diálogo entre a comissão e a conferência episcopal, porque o que interessa agora é salvar o processo. O que está aqui em causa é uma descredibilização do processo. Isso é que me mete medo. A comissão teve um trabalho bem feito e pelo facto de não se saber lidar com a informação que agora temos em cima da mesa pode-se estar a perder todo o processo. Isso é uma desilusão, um desrespeito pelas vítimas. Temos de voltar a recentrar o problema nas vítimas. Desde o último mês não falámos de mais nada senão dos abusadores, das questões jurídicas e as vítimas ficaram esquecidas.

Falando em vítimas, acha necessário um memorial às vítimas, como foi proposto?
A comissão faz essa proposta e a conferência episcopal acolheu-a. Fazer isso de uma forma isolada acho que não. Até pode ser quase uma caricatura. Se é um memorial só para dizer que se fez uma coisinha e não se faz mais nada, então é uma fraude. Pode fazer sentido enquadrar um memorial na Jornada Mundial da Juventude, se fizer parte de um amplo conjunto de medidas a tomar, isoladamente não faz sentido.

Durante décadas, a estratégia da Igreja foi mudar um padre de sítio de cada vez que havia uma denúncia. É preciso também pedir perdão pelos encobrimentos que já se percebeu que existem?
Sim, é preciso pedir perdão. Acho que a Igreja o tem feito, mas não basta. Pedir perdão tem de ter consequências. Temos de pôr o foco em como é que acompanhamos as vítimas. Parece-me que isso está a ficar diluído no meio de discussões de egos.

Egos de quem?
De pessoas que vêm para a comunicação social.

Da comissão independente?
Os membros da comissão independente têm estado bastante silenciosos. Digo de vários agentes da comunicação social.

Já recebeu a lista dos abusadores na Companhia de Jesus?
A lista final de todos os institutos religiosos vai ser entregue no fim de Abril. No nosso caso, não haverá surpresas, porque fizemos um trabalho sempre em conjunto com o grupo de investigação histórica e com a comissão independente e fomos estando a par de tudo o que havia.

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Miguel Almeida fotogrado nos estúdios da Renascença MATILDE FIESCHI

Os casos eram coincidentes?
Nem todos. Tínhamos casos de que a comissão independente não sabia e tivemos casos da comissão independente de que nós não sabíamos. No total, tivemos 12 casos desde 1950 até agora. Um leigo que trabalhava numa das nossas instituições e 11 jesuítas.

Que medidas tomaram para os que ainda estejam no activo?
Não temos ninguém no activo. Estas pessoas que surgiram no relatório já faleceram. Reconhecemos, ao tentar recolher todos os dados, que houve alguns casos que podíamos ter tratado de outros modos. Por isso, continuamos a apelar a todas as pessoas que possam ter sido vítimas de abusos que venham ter connosco. Temos um serviço de escuta que continua activo, temos um serviço de protecção e cuidado em todas as nossas instituições e gostávamos que se estabelecesse aqui uma relação de confiança para que se possa continuar a fazer este levantamento.

Esse apelo que faz não está a ser feito pelos bispos.
Penso que sim. Muitas dioceses têm feito este apelo. A CEP está a estabelecer um grupo independente, ainda não sabemos bem o que é, mas espero que seja alguma coisa que possa acolher outras vítimas.

Paralelamente a todo este processo, assistimos, por exemplo, à demissão do padre Hans Zollner, também jesuíta, que era membro da Comissão Pontifícia para a Protecção de Menores, que não só apresenta a demissão, como tece duras críticas à própria comissão, apontando falta de clareza no trabalho que estava a ser desenvolvido, pouca transparência. A credibilidade da Igreja no combate aos abusos pode estar a ser ameaçada com este tipo de acontecimentos?
Ainda sabemos pouco. Sabemos apenas o comunicado que tornou público em que fala de falta de clareza na selecção de elementos para a comissão, falta de clareza nos processos de tomada de decisão, falta de clareza no modo como os fundos são usados pela comissão. É, de facto, uma coisa inusitada, sair de uma comissão pontifícia e pôr a público isso. É inquestionável o grande esforço da Igreja em querer, de facto, maior transparência e maior acção contra este flagelo. Que há pedras na engrenagem, pessoas que dificultam o processo, sim.

Há pouco falava no sínodo. Em todo o mundo se assiste a uma tensão entre conservadores e progressistas. Essa tensão também se sente na Igreja em Portugal?
É sempre muito redutor o carimbo conservador ou progressista. Todos nós temos uma veia de progressismo e conservadorismo. A Igreja é conservadora e progressista e essa tensão há-de ter sempre de se manter. É conservadora no sentido em que conserva o que vem do Evangelho e da tradição e é progressista no sentido em que quer pôr isso ao serviço da cultura contemporânea. Depois haverá sempre grupos dentro da Igreja que estão mais colados a um pólo ou outro. Tensão haverá sempre e manter-se-á sempre.

Em geral, a Igreja em Portugal é uma Igreja mais tradicional sem ser tradicionalista. Claro que há grupos tradicionalistas, no voltar lá atrás – lá atrás é que está a solução e lá atrás é que há as respostas e, portanto, a Igreja está-se a perder, porque está a dialogar demasiado com o mundo e está a diluir-se. Haverá os grupos muito para a frente, que dizem que a tradição da Igreja esteve mal e agora temos de mudar e começar tudo de novo. Sempre haverá isso, mas parece-me que de um modo geral as instituições grandes da Igreja em Portugal são muito equilibradas. Há sempre uma dificuldade grande de uma instituição desta envergadura e desta dimensão em fazer mudanças internas.

O sínodo pode absorver essas perspectivas tão diferentes? Em Portugal, quando foi divulgado um relatório nacional, houve polémica precisamente por causa disso. Corremos o risco de que o sínodo não possa ser totalmente livre no sentido de expressar a opinião de todos e tender mais para uma ou outra facção?
Com o que saiu no sínodo vieram vários aspectos à luz. Dizia que os cristãos desejam uma Igreja mais transparente, com maior intervenção dos leigos, com o papel da mulher na Igreja mais activo e mais decisório, falavam da questão do celibato dos padres. De facto, houve uma reacção de alguns grupos.

Parece-me que quem reagiu mais a estes tópicos que vieram no sínodo foram aqueles que precisamente não participaram no sínodo. Há gente na Igreja que acha que esta Igreja sinodal não é o caminho correcto para ir e, portanto, deve continuar a ser uma Igreja profundamente hierarquizada, com o poder centrado no Papa e no bispo e no padre, e que, portanto, esta coisa de uma sinodalidade cheira a democracia.

Isso mete medo a muita gente. É tomado muitas vezes como uma Igreja confusa, que já não diz preto ou branco, que está diluída no mundo – mas não. É uma coisa querida pelo Papa. Vamos discernir. De facto, é difícil lidar com o discernimento. O discernimento é uma coisa conjunta, comum e por isso o sínodo traz muito disso, traz as diferentes vozes, diferentes perspectivas das bases da Igreja, para depois conversarmos e não apenas de cima para baixo.

O Papa Francisco referiu também recentemente que o mundo será melhor, se houver paridade na diversidade entre homens e mulheres. Como é que essa paridade pode, de facto, ser mais visível na Igreja, nomeadamente através da ordenação de mulheres?
Claramente o papel da mulher na Igreja tem de ser revisto. E o Papa está a tentar fazer isso ao colocar mulheres em postos de decisão no Vaticano, nos dicastérios. Isso levará tempo. É necessário que as mulheres possam ser chamadas a pontos e a lugares de decisão. É inquestionável.

A Igreja nunca teve mulheres presbíteras, decorre de uma interpretação do Evangelho e da vida de Jesus, que só escolheu homens. Outras pessoas dizem, mas isso é uma questão meramente cultural. É óbvio que no tempo de Jesus ele só escolheria dos 12 apóstolos, que seriam homens. A grande questão é: isto é uma questão teológica ou é uma questão de tradições? Este Papa já instaurou duas comissões para o estudo da possibilidade de ordenação de mulheres como diáconos, que parece que ainda não chegaram a acordo. Parece na tradição da Igreja que de facto havia diaconisas.

Concorda com a opção de ordenar mulheres?
Não vejo impedimentos teológicos profundos que possam impedir a ordenação de mulheres. Não ponho a questão ao nível da teologia. Mas percebo os constrangimentos da tradição da Igreja e das culturas onde o Evangelho está implementado.

Mas, por exemplo, acha normal que as mulheres estejam ausentes, por exemplo, da formação dos padres?
Não acho normal, nem estão ausentes. Há várias dioceses hoje em Portugal que têm mulheres na equipa formadora de seminaristas.

Tudo leva muito tempo na Igreja, mas nós vivemos num mundo muito acelerado, com um ritmo muito frenético. Isso não pode distanciar cada vez mais pessoas da própria Igreja?
Há nessa questão vários níveis. Se falamos a um nível da gestão quotidiana das coisas, da comunicação, a Igreja tem muito a aprender com o mundo. Mas as dimensões mais profundas do ser humano levam tempo. O pensamento deve ser complexo e não devemos ter medo da complexidade do ser humano. Hoje em dia é tudo muito imediato, mas não sei se essa é a solução. Se a Igreja souber manter este lugar na sociedade, respondendo ao que tem de responder atempadamente, mas mantendo uma reserva, porque é o que de melhor tem para oferecer à sociedade, de um lugar espiritual, de um lugar de encontro com cada um, com o seu íntimo mais profundo, de um lugar de encontro com o transcendente, isto leva tempo.

Espero que a Igreja não abdique nunca disto. Está tudo muito acelerado, mas está tudo estoirado. Há imensas depressões, tensões entre famílias. Pelo facto de a sociedade estar muito acelerada, então ainda bem que a Igreja tem aqui aspectos de um oásis. As pessoas têm muito medo do silêncio, porque o silêncio às vezes pode gritar aquilo que não queremos da nossa própria vida. As pessoas têm medo de se confrontar consigo próprias e têm medo, talvez, das perguntas eternas. O que é que andamos aqui a fazer? Qual é o sentido da vida? Se a Igreja for o lugar para levantar estas questões, então esse é um lugar ideal para a Igreja e isso leva tempo.

Defendeu a subida da idade mínima para ser ordenado padre e julgo que foi uma ideia que não teve muito eco, nem teve muito apoio. Há resistências a isso, ou acha que há abertura na Igreja portuguesa para se repensar a idade mínima?
Nos dias que correm, ficar à frente de uma comunidade com 24 anos é muito difícil. Talvez isto não se sinta tanto nas ordens religiosas, que geralmente vivem em comunidade ou nas grandes cidades. Mas se um jovem de 24 anos é enviado para quatro ou cinco paróquias no interior do país muito isoladas, é humanamente muito difícil. Alguns terão centros paroquiais, sociais, que são autênticas empresas, para gerir.

Caminharemos para o fim do celibato dos padres?
Eu não diria assim, diria que o celibato dos padres diocesanos será algo que se manterá sempre. Estou convencido de que num futuro próximo a ordenação de homens casados seja um passo que a Igreja vai dar. Não vejo obstáculo nenhum, antes pelo contrário. Mas também não vejo que seja obrigatório.

Neste momento de crise da Igreja, vê alguma luz?
Vejo. O cristianismo está claramente a situar-se mais na Ásia do que na Europa e na América. Na América Latina está a descer, na África vai crescendo devagarinho, na Ásia está a crescer muito. Há uma deslocação do cristianismo para a Ásia. Há uma série de países em que o cristianismo está muito pujante. Aqui, na Europa e no Ocidente, está de facto meio moribundo, mas acho que é a Europa toda, não é só o cristianismo. A política está assim, a sociedade está assim. Estamos cansados e acho que é preciso um revigorar claro da vida na Europa – mas vejo muita luz.

O Serviço Jesuíta aos Refugiados é um trabalho que é feito pela Companhia de Jesus, um trabalho de apoio à integração de refugiados. Teme que este caso, de um ataque criminoso em Portugal, possa pôr em causa o acolhimento a imigrantes que está a ser desenvolvido?
Acho deplorável o aproveitamento político que se faz numa situação dessas para pôr em causa todos os refugiados e imigrantes e aqueles que procuram Portugal como um lugar seguro para vir trabalhar ou refugiar-se. Tudo indica que não tem nada que ver com terrorismos, nem sequer com questões religiosas. Tem que ver com alguém profundamente sofrido, que também ele é vítima, porque perdeu a mulher num campo de refugiados na Grécia e traz uma história dolorosíssima de trás e que levou a um acto de desespero.

Parece-me que isto só vem sublinhar a necessidade ainda maior de um acompanhamento, um acompanhamento mais próximo, mais concreto e mais eficaz a todas as pessoas que nos procuram. O Serviço Jesuíta aos Refugiados tem tentado fazer este acompanhamento em Portugal, é sempre muito difícil. A imigração tem de ser minimamente controlada.

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